‘O cheiro de carne queimada era avassalador’

Entrevista a Jorge Calado, vencedor do Prémio Universidade de Lisboa deste ano, sobre a sua paixão pela fotografia

O interesse pela fotografia apareceu pela via da química, da revelação?

Não. Quando eu era lá aluno, o Técnico tinha o NAF, o núcleo de ação fotográfica, por onde passaram grandes fotógrafos. Eu tinha um amigo, um colega de turma, que gostava de fotografia e que revelava lá. E lembro-me de ver pela primeira vez a revelação da imagem latente e aquilo parecia um milagre. Depois tive uma máquina, daquelas caixas que era só carregar num botão. Quando comecei a interessar-me a sério por fotografia, a escrever sobre fotografia, a colecionar fotografia, a fazer exposições de fotografia – não minhas, mas de outros – deixei eu de fotografar.

Tornou-se demasiado exigente?

Ainda fotografo se for a um sítio pela primeira vez. Quando fui pela primeira vez à Austrália ou ao Japão fartei-me de fazer fotografias. Mas à segunda e terceira já não. Em Nova Iorque, quando ia fotografar, pensava: ‘Eh pá, mas outro já fez isto em melhor. Quem sou eu para fotografar?’. Então faço outras coisas.

Qual foi a primeira fotografia que comprou?

A primeira fotografia que comprei foi do Mapplethorpe, de quem eu não sabia nada. Tinha discos da Patti Smith e gostava muito das capas. Comecei-me a interessar pela fotografia através dela. Depois é que percebi que estas capas eram feitas pelo Mapplethorpe. Tinha visto o Einstein on the Beach no Met e havia um retrato muito conhecido na altura do Bob Wilson com o Philip Glass, os dois juntos, que eu achava extraordinário. E quando verifiquei que essa fotografia também era do Robert Mapplethorpe pensei: ‘Este tipo deve ser bestial’. Quero ver mais coisas. Informei-me e disseram-me que podia ver as coisas todas dele na galeria do Robert Miller, na 5.ª Avenida. ‘Mas eu não vou comprar, é só para ver’. ‘É para isso que servem as galerias. Mostram-lhe o que quiser e quando estiver farto sai’. Ao fim do dia saí de lá com uma fotografia dele.

E foi cara?

Era dinheiro, mas nada incomportável. Umas centenas de dólares, talvez. Não eram dez mil. E em 1987, vinha aí o sesquicentenário, os 150 anos da invenção da fotografia, em 1989, e a secretária de Estado Teresa Gouveia pediu-me para fazer a chamada coleção Nacional de Fotografia. Eu conhecia muitas galerias e os museus e os fotógrafos importantes, e fiz isso durante dois anos, foi a minha contribuição para a fotografia em Portugal.

Disse que conheceu alguns fotógrafos. Qual foi o que gostou mais de conhecer?

Conheci tantos… 

Um que admirasse imenso e com quem teve depois oportunidade de trocar ideias.

O Manuel Alvarez Bravo, o mexicano, é certamente um deles. O Wolfgang Sievers, que fugiu do nazismo, passou por Portugal no princípio dos anos 30 e foi depois para a Austrália. Fiz-lhe uma grande retrospetiva no Arquivo Fotográfico Municipal e ele veio cá, aos 87 anos, creio. E gostei muito, mas isso foi há relativamente pouco tempo, de conhecer o Meyerowitz, aquele que fotografou o chamado aftermath do 11 de setembro, a destruição das Torres Gémeas.

Ele falou-lhe sobre essa experiência de andar lá no meio?

Sim. Eu próprio ainda tive um bocado essa experiência. Os ataques foram em setembro e eu fui a Nova Iorque nos meados de novembro. Fui lá para ver e o que me fez mais impressão é que ainda cheirava a carne queimada. Estava tudo a fumegar. E o cheiro era de carne queimada, misturado com aquele cheiro de metais. Mas o cheiro de carne queimada era avassalador. Ainda hoje quando me lembro disso faz-me muita impressão, porque o que eu estava a cheirar eram partículas humanas.