Portugal junta-se em setembro aos países onde é legal recorrer à gestação de substituição, ainda que apenas em caso de doença e desde que não haja qualquer pagamento envolvido. Em discussão desde 2011, o dossiê das chamadas “barrigas de aluguer” ficou resolvido no final de julho, com o parlamento a aprovar um diploma com algumas alterações após um veto inicial de Marcelo Rebelo de Sousa. A lei foi publicada ontem e dá ao governo quatro meses para tratar da regulamentação.
Cláudia Vieira, presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade, compara a situação à da legalização do aborto, que veio pôr termo a uma realidade clandestina e que não oferecia garantias nem igualdade aos portugueses. Também nesta área houve casais que tentaram, nos últimos anos, dar a volta às limitações por sua conta e risco. A especialista diz ter tido conhecimento de uma dezena de casos de famílias que procuraram serviços de gestação no estrangeiro, em países como Estados Unidos, Israel, Brasil ou Índia. “Temos de ter consciência de que não é por não ter sido legal até agora que não tínhamos estes casos.”
Mais do que casos de homossexuais, chegaram à APF casos de mulheres sem útero ou com problemas clínicos, aquelas a quem se destinava a lei que demorou a reunir consenso no parlamento. Um dos casais chegou a pagar 100 mil euros pela maternidade de substituição e tratamentos de fertilidade que, em 2015, lhe permitiram ter um filho.
Se os preços praticados nas agências e clínicas internacionais eram incomportáveis para muitas famílias, na hora de trazer as crianças para o país surgiam outros problemas, diz Cláudia Vieira. “Há casos em que apenas o marido pôde registar o filho e a mulher entrou com um pedido de adoção.”
Sofrimento escusado Eurico Reis, presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, admite também ter conhecimento de três casos de casais com problemas do foro médico que optaram por procurar uma resposta no estrangeiro, bem como de dificuldades em reconhecer legalmente as crianças em Portugal. “Se isto tivesse sido resolvido na anterior legislatura, já tinha havido crianças nascidas”, sublinha o juiz, que lidera o organismo que supervisiona os tratamentos de fertilidade em Portugal e que, no futuro, terá de validar todos os contratos de gestação de substituição.
Para Eurico Reis, o sucessivo adiantamento do dossiê – depois de um impasse na legislatura anterior e, em maio, com o veto do Presidente da República – foi “uma pura jogada política com o sofrimento das pessoas”. Na sua opinião, o diploma final não sofreu alterações significativas.
Por outro lado, Eurico Reis fala de um contrassenso na posição tomada pelos partidos mais conservadores e mesmo pelo Presidente, considerando que a gestação de substituição, da forma como está enquadrada, põe menos em causa a “estrutura familiar tradicional” do que o alargamento de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) a mulheres solteiras ou casais homossexuais, aprovado no parlamento em maio. “Em termos de modelo de família, a alteração à lei 32/2006 é muito mais destruidora; porém, relativamente a esta, não houve veto nem nada. Toda a gente concentrou o seu argumento combativo na gestação de substituição quando era algo em discussão desde 2011, destinado a pessoas com um problema clínico. O alargamento das técnicas de PMA começou a ser discutido este ano e ficou resolvido sem grande discussão.”
Fora do alcance da legislação ficam os casais de homens. Nas agências de gestação de substituição no Sudeste asiático e mesmo nos Estados Unidos são descritos como alguns dos principais clientes e a situação tem vindo a tornar-se mais difícil: países como a Índia ou a Tailândia, onde o negócio das barrigas de aluguer floresceu nos últimos anos, têm vindo a proibir contratos com beneficiários estrangeiros.
Eurico Reis considera que a atual legislação não pode ser considerada discriminatória: “As mulheres têm um fator diferenciador relativamente aos homens: têm a capacidade de gerar uma criança. O que a Constituição garante não é a igualdade absoluta, mas a proibição da desigualdade injustificada.” O juiz admite, porém, que a discussão de um eventual alargamento a casais gay masculinos ou homens sem parceiro fica em aberto. “Pode discutir-se, mas é uma outra discussão que nem o conselho nem os deputados quiseram ter por agora.”
Interesse de casais espanhóis Segundo as estimativas da Associação Portuguesa de Fertilidade, há cerca de 50 mulheres à espera de serem mães através da gestação de substituição. Quando a lei foi votada pela primeira vez, em maio, houve também manifestação de interesse por parte de casais espanhóis, dado que Espanha não legalizou esta prática. Eurico Reis admite que a hipótese de receber casais estrangeiros será um dos pontos a estudar no processo de regulamentação.