O espião russo que foi detido a 21 de maio em Roma juntamente com Frederico Carvalhão Gil, dos serviços secretos portugueses, já regressou ao Leste após a decisão do Tribunal de Recurso da capital italiana de o pôr em liberdade, rejeitando o pedido de extradição feito por Portugal. Depois de quase dois meses passados numa prisão de alta segurança por suspeitas de espionagem e corrupção e com um mandado de detenção europeu que a Justiça italiana decidiu não levar até ao fim, Sergey Pozdnyakov terá voltado à Rússia antes que se desse um volte-face na investigação.
Para as autoridades portuguesas, que apanharam os dois homens em flagrante numa esplanada de um café sem história em Roma, o facto do agente da SVR, nova marca do KGB, não ter sido extraditado para Portugal como era esperado, e de estar em paradeiro incerto, não provoca mossa na investigação. Segundo uma fonte da Polícia Judiciária (PJ) contactada pelo SOL, a decisão da Justiça italiana não põe em causa a consolidação da prova: «Este tipo de pessoas está preparada para não falar, nunca esperámos que isso acontecesse. Faremos a investigação com o que temos».
Há muito sob suspeita
Recorde-se que Carvalhão Gil e Pozdnyakov foram detidos pela equipa mista da PJ e seus congéneres italianos em finais de maio, quando o espião português, suspeito de estar a soldo dos interesses russos, traficava documentos classificados da NATO com a outra parte. No entanto, desde 2015 que o elemento do SIS, homem de formação marxista, se encontrava a ser investigado internamente pelos serviços. Fora o próprio secretário-geral do SIRP (Sistema de Informações da República Portuguesa), Júlio Pereira, quem, após ter recebido de uma agência ocidental fotografias de um encontro na Eslovénia entre o agente luso e o russo, dera o passo de comunicar as suspeitas ao Ministério Público e à PJ.
A operação, no entanto, manteve-se encoberta. O SIS manteve o agente no ativo, mas, para defender os interesses nacionais, Carvalhão Gil foi deslocado para o departamento de análise de informação e arredado de qualquer contacto com documentação sensível que envolvesse a Aliança Atlântica. O agente não se terá apercebido de que estava sob investigação, mas manteve prudência em relação aos contactos telefónicos.
Desde outubro de 2015, mês em que se dera o último encontro entre, que Carvalhão Gil e o espião russo não se comunicavam – e a PJ, que o tinha sob vigilância 24 horas, andava perdida. Em maio deste ano, os investigadores receberam a informação de que Carvalhão Gil pedira um dia de férias, uma sexta-feira, fazendo adivinhar um fim de semana prolongado. Mas foi num telefonema com um familiar que o espião acabou por se trair, ao avisá-lo de que não ia estar em Portugal por esses dias. A PJ soube em cima da hora o destino do voo marcado com antecedência através da internet e a operação desencadeou-se: os investigadores partiram no mesmo avião que o agente apanhara para Itália.
Encontro de negócios
Com a detenção da dupla, e as buscas aos respetivos quartos onde se hospedaram, a PJ encontrou na posse de ambos documentação altamente comprometedora. Na mochila que Carvalhão levava aos ombros, estava matéria top secret relacionada com os interesses da Aliança Atlântica e 10 mil euros, enquanto que no bolso do casaco do russo foi encontrado um recibo manuscrito, sem qualquer timbre, no valor correspondente. Mais tarde, quando Carvalhão Gil – suspeito de ter praticado crimes de espionagem, violação do segredo de Estado, corrupção e branqueamento de capitais – foi ouvido pelo juiz de instrução Ivo Rosa, já em Portugal, daria uma explicação sui generis para o capital que lhe fora apreendido.
O português reclamou inocência e justificou a deslocação a Itália como um mero encontro de negócios. Teria conhecido Sergey Pozdnyakov ocasionalmente num café em Lisboa e daí a inspirarem confiança um ao outro foi um pulo. O encontro e o dinheiro encontrado nas buscas fariam parte do plano da dupla para criar uma empresa de exportação de azeite português para Moscovo.
As explicações do mercadejo não convenceram nem o Ministério Público nem o juiz de instrução, que acabou por lhe aplicar a medida de coação mais gravosa: prisão preventiva. No entanto, o magistrado deixou logo em aberto que esta medida podia sofrer alterações ao pedir aos serviços prisionais e de reinserção social um relatório que avaliasse as possibilidades de Carvalhão Gil passar para prisão domiciliária. Uma das preocupações de Ivo Rosa, que motivaram depois a mudança da medida de coação, prendia-se com a falta de segurança no meio prisional para salvaguardar a segurança do arguido envolvido numa imbricada história de espionagem.
MP recorre
Carvalhão Gil acabou por sair da prisão para a sua residência em Lisboa com pulseira eletrónica. Recorreu da decisão, esgrimindo de novo a sua inocência e a ausência de provas para a sua detenção, tendo o juiz de instrução rejeitado o expediente, por o considerar extemporâneo.
Também o MP, segundo apurou o SOL, recorreu da medida de coação, sustentando que se mantém o perigo de perturbação do inquérito e de fuga. Tanto mais que, alega, o arguido teve entretanto conhecimento de que o SIS lhe instaurou um processo disciplinar e que, com o emprego em risco, já nada o prende a Portugal.
Desconhece-se ainda o teor da decisão do Tribunal de Recurso de Roma que determinou a libertação de Sergey Pozdnyakov e os investigadores responsáveis pela investigação aguardam ainda as perícias feitas a computadores, pens e cartões de memória de telemóveis aprendidos nas buscas a casa do arguido e da mãe. E se de negócio de azeite se tratava o negócio entre os dois espiões, nem uma borra de tal empreendimento foi encontrada nas revistas a pente fino a vários locais, quer em Portugal quer em Itália.
Demasiado condimentado mostrou-se o pedido de habeas corpus que o advogado de Carvalhão Gil apresentou no Supremo Tribunal de Justiça, no mês passado. O causídico, que pedia a libertação imediata do espião português, alegou que «Frederico Carvalho foi detido em conjunto com o seu amigo Serguei Nicolaievitch num café em Roma, onde bebiam cerveja e falavam de um negócio pontual relativamente a bens alimentares quanto aos quais se nota escassez no mercado russo».
E, em relação à documentação confidencial encontrada na mochila de Carvalhão Gil, o advogado retrata o seu cliente como um discípulo de Sócrates, o filósofo: afinal não estava a trabalhar para os russos, transportava-os consigo para, nos tempos mortos, «pensar» sobre os assuntos.
Saudades da comida italiana
Os juízes do Supremo, que rejeitaram o recurso, não aprovaram a argumentação da defesa, sobretudo em relação aos gostos do comensal espião. No roteiro gastronómico entre o estabelecimento prisional português e o italiano, onde passou uns tempos antes de ser expatriado, o agente luso diz que prefere a pasta. Enquanto em Monsanto a comida é «péssima, gorda, mas abundante», diz, um veneno que rapidamente tornará os reclusos «obesos», em Itália «a qualidade dos géneros e a confeção surpreendem o arguido».
A explanação do advogado deixou os juízes Isabel Pais Martins, Santos Carvalho e Manuel Braz atónitos, ao ponto de ironizarem alegando que «considerações comparativas sobre as condições de detenção nas prisões, por muito vivas e gratificantes que sejam as suas memórias relativamente ao tratamento que lhe foi proporcionado» em Itália, são «despropositadas».
Também os jornalistas vieram à baila. Para a defesa de Carvalhão Gil, os jornais que noticiaram o caso «vivem pelo socorro do proxenetismo cujos anúncios publicam» e «publicam coisas tão explícitas que não deviam poder vender-se perto das escolas, devendo ser remetida a venda para o interior dos estabelecimentos que vendam, ou possam vender, pornografia».