Quando uma convenção tem duas interpretações, ganha a do MNE

Tendo em conta que está em causa uma tentativa de homicídio, o governo poderia ter desbloqueado a imunidade – uma posição defendida num manual de direito internacional, mas contrariada pelo MNE.

Afinal a imunidade diplomática pode ou não ser retirada aos dois gémeos de 17 anos sem o ‘ok’ do Iraque? As opiniões dividem-se e, por isso, o que conta é a interpretação do Departamento Jurídico do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE): é impossível, tudo está dependente do Iraque.

Assim que o caso começou a fazer capas de jornais, foram vários os juristas que estudaram as possibilidades de haver um levantamento da imunidade diplomática sem autorização das autoridades iraquianas. 

O advogado Paulo Saragoça da Matta, por exemplo, defende que Portugal poderia fazê-lo e fundamenta a sua posição no Manual de Direito Internacional e Relações Internacionais, da jurista Cristina Queiroz: “Na hipótese de se tratar de um ato criminal, o Estado recebedor pode retirar ao enviado diplomático a respetiva imunidade, submetendo-o à sua jurisdição criminal interna”.

Esta leitura, partilhada por vários advogados nacionais e de outros países, não colheu, porém,  junto do Departamento Jurídico do MNE – que na quarta-feira, pouco antes de a Procuradoria-Geral da República anunciar que pretendia constituir arguidos os dois irmãos, veio esclarecer o que iria acontecer caso houvesse necessidade de levantar imunidade aos dois jovens. “O MNE sublinha que não compete às autoridades portuguesas levantar a imunidade de agentes diplomáticos estrangeiros acreditados em Portugal”.

Para que se inicie o processo, refere a mesma fonte, é preciso que seja “feita a comunicação ao MNE, pelas autoridades judiciárias competentes, da necessidade do pedido de levantamento da imunidade diplomática”. O que aconteceu. Segundo a mesma nota do Departamento Jurídico do MNE, “a renúncia à imunidade de jurisdição [numa fase posterior] opera-se através de uma comunicação escrita por parte do Estado acreditante transmitida às autoridades portuguesas, via Ministério dos Negócios Estrangeiros”.

E se o Iraque não aceitar? Após o Ministério ter solicitado ontem o levantamento da imunidade diplomática ao representante iraquiano com competência nessa matéria, há duas hipóteses: ou o Iraque levanta a imunidade, ou não.

“Caso haja renúncia à imunidade de jurisdição, as autoridades judiciárias portuguesas podem então instaurar ou continuar o processo penal contra as pessoas em causa. Caso não haja renúncia, tal não será possível, uma vez que, nos termos do artigo 31º da Convenção de Viena, a imunidade de jurisdição penal é absoluta, não estando previstas quaisquer exceções à mesma”, refere o gabinete do ministro Augusto Santos Silva, explicando que o não levantamento da imunidade “não isenta o agente diplomático da jurisdição do Estado acreditante”. Ou seja, significa apenas “que a instauração ou continuação de um processo penal poderá assim ter lugar, neste caso concreto, no Iraque.” 

O encontro em Lisboa Segundo esclareceu ontem fonte oficial do MNE, “o encarregado de negócios da Embaixada do Iraque foi recebido […] pelo embaixador chefe do protocolo de Estado, que tem competência em matéria de imunidades”.

E foi nesse encontro, tal como foi anunciado na véspera, que Portugal formalizou o pedido de levantamento da imunidade diplomática dos dois jovens de 17 anos, suspeitos de tentativa de homicídio de Rúben Cavaco, de 15 anos.

Além do encontro em Lisboa, esta semana foi também tornado público que o embaixador do Iraque em Portugal, Saad Mohammed M. Ali, foi chamado de urgência a Bagdade para esclarecer todos os detalhes. A reunião foi pedida depois de um ex-embaixador iraquiano em Lisboa ter-se manifestado publicamente “horrorizado” e “envergonhado” com o que se passou em Ponte de Sor.