Voltamos à premissa clássica de tantos policiais. Como no início da década de 1990, com a revolucionária incursão de David Lynch na ficção para o pequeno ecrã em Twin Peaks – que tem já prevista uma terceira temporada para 2017 –, uma jovem aparece morta. As circunstâncias afinam até ao limite um quadro macabro. Mas desta vez não estamos na pele do investigador, nem o pano de fundo é uma pequena cidade ficcional entre a névoa da imaginação e o cruzamento de um sem fim de típicas cidadezinhas do interior dos EUA. Não vamos buscar as pegadas dispersas à procura de suspeitos, somos confrontados com uma autêntica orgia de provas contra o nosso protagonista, Nasir Khan, e o mistério nasce da nossa capacidade para pormos em causa tudo o que pensamos que sabemos.
O actor Riz Ahmed interpreta de forma brilhante um jovem muçulmano de origem paquistanesa, nascido nos EUA, que vivia uma existência relativamente banal como estudante universitário até à noite dos incidentes. Traduzindo o labirinto de emoções e as linhas de sombra onde nunca estamos certos se podemos confiar nos nossos instintos para interpretar esta ou aquela expressão, o actor que tinha já provado o seu talento ao protagonizar, em 2012, O Fundamentalista Relutante, volta a colocar o público perante um puzzle dilemático, confrontado com uma ardilosa margem de incerteza. O mistério, ao longo dos oito episódios desta série da HBO – até ao momento foram exibidos sete no canal TVSéries – prende-se com perceber se terá sido ele a esfaquear 22 vezes a vítima, Andrea Cornish.
Conheceram-se nessa mesma noite. Convidado para uma festa, Khan fica pendurado depois de um amigo que lhe daria boleia se cortar à ultima hora. O jovem acaba por roubar o táxi do pai e segue em direcção a Manhattan e a uma noite que prometia diversão e mulheres. Mas às tantas vê-se à nora na ilha e ao encostar numa rua para se orientar no mapa, um pedaço de mau caminho entra-lhe no banco de trás. Depois de ter espantado outros clientes, ao pôr os olhos no retrovisor Nasir sente-se incapaz de mandar sair Andrea. Os dois vão acabar em casa dela, a meter drogas e brincar com facas antes de se despirem e tratarem do assunto na cama. Algum tempo depois, ele desperta vestido, sentado na mesa da cozinha, onde dormira com a cabeça deitada sobre os braços. Sobe as escadas até ao andar superior e ao quarto dela; ao ligar a luz tem diante de si uma bizarra cena de crime. Daí até ser preso, nessa mesma noite, vai passar por uma espiral vertiginosa em que tudo vai jogar contra ele.
Criada por Steve Zaillian, o guionista de A Lista de Schindler e pelo romancista Richard Price, autor de guiões para The Wire, The Night Of traça uma inquietante diagonal que dá relevo a uma série de questões problemáticas, começando pelas armadilhas do sistema criminal, e detendo-se na estigmatização dos muçulmanos após o 11 de setembro.
Esta série arruma a um canto o lastro de décadas de serões televisivos em que as investigações criminais servem para cativar os espectadores para delírios inconsequentes em que se constrói um delirante retrato robô daquilo que é a engrenagem judicial dos EUA. Como já tem sido notado por alguns críticos, se esta série tem dois antecedentes claros esses são os recentes fenómenos à volta de casos reais de polícia, Serial e Making a Murderer. O último uma série da Netflix em que duas documentaristas (Laura Ricciardi e Moira Demos) seguiram ao longo de uma década um pavoroso exemplo de instrumentalização da justiça numa terriola do estado de Wisconsin. Depois há o podcast que levou milhões de pessoas a acompanhar como uma novela radiofónica a minuciosa investigação de uma jornalista (Sarah Koenig) sobre um homicídio de Hae Min Lee, uma estudante de liceu em Baltimore (estado do Maryland), e que levou à prisão Adnan Syed, um muçulmano filho de imigrantes paquistaneses. Casos muito mal explicados e que que estão a merecer reapreciação devido ao destaque mediático que lhes foi dado na sequência destas duas séries.
Mas se The Night Of remete para estes exemplos de heróicas análises do sistema judicial, estamos aqui no terreno da sétima arte, aquela que tem cada vez menos lugar nas salas de cinema e tem buscado refúgio na televisão por cabo. Não é só o retrato cru, ou o ambiente tenso e nem o paciente ritmo oferecendo tempo à contemplação e reflexão, esta é uma série de autor que, com cada um dos seus planos, se coloca à margem das lustrosas produções que barram de um humor inconsequente diálogos cuspidos a uma velocidade vertiginosa para não nos dar tempo de questionar o seu rigor ou sentido.
Há uma mestria no modo como são sequenciadas cada uma das cenas, como o ângulo da câmara se revela um estudo das intenções dos personagens. Riz Ahmed notou como os guiões deixam «espaços negros», um «espaço negativo onde as pessoas possam projectar» o que quiserem. Desenvolvida pela HBO com James Gandolfini, rosto da série que inaugurou a era de ouro da ficção televisiva, Os Sopranos, quando o actor morreu, em 2013, já o primeiro episódio tinha sido filmado. Era dele o papel de John Stone, o advogado de Khan. Robert deNiro chegou a ser sondado para substituí-lo, mas foi John Turturro, amigo de Gandolfini quem acabou por encarnar Stone. Seria um sonho ver Gandolfini voltar a a uma série de alto calibre, mas Turturro, que falou do conflito interno com que se debateu antes de aceitar o papel, faz um trabalho magistral que não nos deixa namorar por muito tempo a ideia do que teria sido o Stone original.
Eis uma série de personagens, ficções mais reais que muita gente, e que nos convencem que prosseguem os seus dias, sentem o peso pingado e ecoante das horas. Agora mesmo, Nasir Khan, baptizado Sinbad na choldra, não deixa apagar-se a réstia de esperança, mas de qualquer modo despede-se de quem foi. Mesmo que seja inocente, sabe que a partir de certo ponto mais valia ser culpado.
Viagem ao Fim da Noite
Projecto da HBO com James Gandolfini, a série “The Night Of” confirma que o lugar do melhor cinema é hoje no pequeno ecrã