1. As sequelas dos ataques terroristas continuam a manifestar-se no seio do continente europeu. E com especial incidência no seu coração – em pleno Estado francês, uma das maiores potências europeias e uma referência cultural da nossa civilização. Desta feita, a ameaça aos direitos individuais dos cidadãos proveio de uma autoridade do poder local (e não do poder central ou estadual) – trata-se de uma decisão do município de Villeneuve-Loubet, nas proximidades de Nice, que proíbe a utilização do burkini, ou seja, a burka adaptada para utilização na praia. Um bikini versão burka, que é, como se sabe, um símbolo religioso islâmico, cuja utilização é obrigatória para as mulheres.
2. Note-se que esta medida não é nova, nem é original. Não é nova: em França, a Assembleia Nacional aprovou, por uma larguíssima maioria há anos, a proibição da utilização de símbolos religiosos (quer a burka, quer o véu islâmico, quer o crucifixo cristão) nas salas de aula. Posteriormente, o Presidente Jacques-Chirac (de centro-direita) decretou a proibição da utilização da burka nas ruas francesas, medida que já em 2010 fora objecto de juízo de inconstitucionalidade por parte do Conselho de Estado (órgão que, com as devidas ressalvas, de natureza, poderes e composição, pode ser equiparado ao nosso Tribunal Constitucional).
Fundamento avançado pelo Conselho de Estado para invalidar a lei de proibição da burka: interesse jurídico protegido pela restrição à liberdade dos cidadãos carecia de densificação pelo legislador. Ou seja, a restrição ao direito fundamental dos cidadãos franceses não foi justificada devidamente pela protecção de um outro interesse público, logo, foi uma restrição ao direito, por via legislativa, ilegítima.
3.O que não pode deixar de suscitar a nossa interrogação é a razão pela qual o poder político francês – quer seja mais à esquerda, quer seja mais à direita – persiste, e insiste uma vez mais, na aprovação de medidas tão dramaticamente restritivas da liberdade como são estas. Que proíbem em absoluto a utilização de símbolos religiosos, quer seja na praia, quer seja nas ruas francesas. Há razões estruturais e há razões conjunturais.
3.1. Há razões estruturais. A França nunca se conseguiu libertar do seu legado napoleónico. Ou, como já alguns avançaram, do jacobinismo primário que se seguiu à Revolução Francesa de 1789- aí, ao contrário do que sucedeu, por exemplo, com a Revolução Americana de 1776, o constitucionalismo e o princípio da separação de poderes serviram, não tanto para defesa dos direitos e liberdades individuais dos cidadãos, mas sobretudo para dotar o poder executivo (o Governo) de privilégios contra o poder legislativo e o poder judicial (encarado como o “poder tirano conservador”). Ao invés do que sucedeu em paragens anglo-saxónicas, em França (e depois propagando-se a muitos países europeus, incluindo Portugal), o liberalismo limitou-se a ser um “absolutismo republicano”: um prolongamento da herança pré-liberal, substituindo-se o Rei pelo Governo. Substituindo-se, enfim, as Cortes e o conselho privativo do Rei (a legimitidade estamental) por uma Assembleia dotada de legitimidade nacional (que não ainda democrática, porque excluía largas sectores da população do exercício dos mais elementares direitos políticos).
3.1.1.Ora, o sucesso da Revolução Francesa implicava a separação total entre o poder temporal e o poder espiritual – isto é, entre o poder político e o poder eclesiástico. Os cidadãos poderiam livremente prestar o seu culto, no espaço privado – nunca, no entanto, no espaço público. A religião no espaço público seria (será) uma ameaça à afirmação da República, do poder político (temporal) de todos. O Homem pode ser religioso – mas a sociedade e a República terão sempre de ser seculares. Daí esta obsessão pelo secularismo que perdura até hoje em França.
3.1.2. Acresce, ainda, que, desde os alvores do republicanismo francês – com especial premência na era napoleónica -, dominou a concepção da lei como instrumento de mudança das sociedades e do Homem. Entendia-se, pois, que a construção do “Homem novo” devia partir da lei, das mudanças legislativas – sendo as leis obrigatórias, os seus destinatários (os cidadãos do Estado) terão necessariamente de as seguir, sob pena de sanções. O medo da aplicação destas levaria os cidadãos a adaptarem-se à visão da sociedade perfilhada pelo legislador. Se queremos mudar a sociedade, mudamos a lei. Se queremos eliminar um problema social, aprovamos uma lei a banir esse comportamento.
A lei seria, pois, o motor do desenvolvimento social. Ou seja: ao contrário do que sucedeu no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, em França, o Estado impôs-se, ou dominou, à Nação (ou, se preferirmos, a sociedade, embora sejam conceitos distintos) – e não foi a Nação (a sociedade) que se impôs e dominou o Estado. Pois bem, as iniciativas legislativas que proíbem, em termos absolutos, a burka seguem (confirmam!) os traços do republicanismo francês que expusemos nas linhas anteriores, os quais se mantiveram até aos nossos dias. O carácter secular do Estado prevalece sobre a liberdade religiosa dos cidadãos.
3.2. Há, ainda, razões conjunturais. Essas são facilmente identificáveis: o medo, o pânico, que se instalaram na sociedade francesa em consequência dos ataques terroristas ocorridos no seu território. Pânico e medo que, na sua essência, despertam, no ser humano, o seu lado mais irracional. E, portanto, a resposta ao terrorismo é, na sua projecção mais imediata, profundamente irracional. Há alguma racionalidade na proibição da utilização de burkinis como medida idónea para combater o terrorismo? Não. Pelo contrário: a proibição de um símbolo religioso, numa conjuntura internacional particularmente sensível, só produzirá o efeito adverso- o de exacerbar a percepção pública de que estamos realmente perante uma “guerra de civilizações” ou uma “guerra religiosa”. Consequentemente, os líderes europeus – neste caso, franceses – estão a dar trunfos à narrativa dos grupos terroristas islâmicos. Em vez de resolver, os políticos franceses estão a agravar o problema do terrorismo ao actuarem desta forma. É um caso típico em que o remédio agrava a doença.
3.2.1. Por outro lado, a medida do município perto de Nice (cidade que já foi afectada por um lamentável e trágico ataque terrorista) teve, desta feita, um pormenor muito curioso: reúne o consenso de Partido Socialista, do Partido Republicano de Nicolas Sarkozy e da Frente Nacional, de Marine Le-Pen (extrema-direita). O que significa que os partidos tradicionalmente do centro (PS e a antiga UMP, hoje Partido Republicano) viraram à direita para contrariar a sedução que as propostas extremistas de Marine Le-Pen exercem sobre importantes franjas do eleitorado francês. Quem não for extremista, é fraco – esta é a triste realidade da vida política francesa actualmente.
O que não deixa de ser um legado do Presidente François Hollande: a sua fraqueza e impopularidade gerou um vazio de liderança que foi substituído pelo extremismo de direita. Para já, na retórica – veremos se este extremismo terá outras manifestações mais graves.
4. Em conclusão, independentemente do que vier a suceder em 2017, Marine Le Pen é já uma vencedora – conseguiu condicionar as opções estratégicas, o discurso e as propostas políticas (veremos com que latitude) dos partidos tradicionalmente democráticos, pluralistas e de “poder”. Inclusive, o Partido Socialista na sua encarnação musculada de Manuel Valls, o Primeiro-Ministro em exercício de funções. Felizmente, na França de Hollande, ainda há órgãos políticos que funcionam – o Conselho de Estado provou-o no final da semana passada.