Este “Cartas da Guerra” começa contigo, grávida, no sofá, a leres “D’este Viver Aqui Neste Papel Descripto”, o livro de António Lobo Antunes com as cartas que escreveu à mulher quando estava na guerra colonial, que dá origem a este filme?
Sim. Estava naquele primeiro mês em que uma pessoa não se sente grávida. E é nesta fase que esse livro com as cartas me vêm parar às mãos e achei que era uma forma de iniciar uma relação com a minha barriga: ler as cartas em voz alta para o Martim [primeiro filho da atriz]. Ainda por cima estava sozinha em Lisboa, porque estava a gravar uma novela e o Ivo [Ferreira, marido e realizador] estava a correr festivais com o segundo filme dele, o “Águas Mil” e passava muito tempo fora de casa. Esta questão da mulher sozinha, com o marido longe, fez-me achar que aquele livro era o livro certo para ler naquele momento.
Ainda que, no teu caso, não havia o peso da guerra…
Sim, mas eu sou um bocadinho dramática… O que é certo é que acabei por devorar as cartas em dias. Curiosamente nem era grande leitora do Lobo Antunes, foi só depois das cartas que fui ler os outros livros dele.
Como é que esse momento mãe-filho se transforma num filme?
O Ivo chega de uma viagem, de madrugada, e eu tinha tido uma insónia e estava acordada a ler. Ele, como não sabia que eu estava acordada, entrou pé ante pé, e ouve-me a dizer “Meu querido amor, onde é que estiveste?” e achou que eu estava com outro homem em casa. [risos] Mas ficou a ouvir-me e aquelas cartas são de uma profundidade, de uma beleza e, sobretudo, dão uma consciência política e histórica…
Que não tinhas?
Que desconhecia. Não tive pai, tio, avô, ninguém que tivesse feito a guerra colonial. E para mim o lado mais interessante e revelador daquelas cartas foi encontrar um universo que desconhecia. Porque aquele capítulo da história era o capítulo que nunca tínhamos tempo para dar. Nunca havia tempo para dar o 25 de abril nem a guerra colonial. Só mais tarde comecei a procurar entender esse hiato que nos impuseram e porque continua a haver tanto silêncio sobre este assunto, porque é sempre um assunto delicado.
Mas como é que começam a pensar no filme?
Depois de ser apanhada no sofá a ler começámos a falar na possibilidade de adaptação ao cinema e o Ivo é próximo da Zé Lobo Antunes, filha da Maria José, e em conversa com ela e com a Joana, a outra filha, começaram a falar nessa possibilidade. Inicialmente elas acharam que era impossível adaptar as cartas ao cinema, mas há um grande respeito e carinho mútuo e sabiam que, se o Ivo avançasse, seria sempre tudo feito com muito respeito. Até porque esta é a história de tantos portugueses, que passaram pela guerra colonial, e das suas mulheres. Depois começou finalmente o trabalho de investigação, muita leitura, almoços com camaradas, porque as cartas são a estrela polar deste filme, mas há outros planos de ação também. E claro que o guião teve a aprovação das manas, a Zé e a Joana.
Entretanto candidatam-se aos subsídios do ICA, ganham, mas depois o filme passa por um momento complicado.
Foi dramático. Quando perdemos o ministério da cultura, as verbas para este filme ficaram congeladas e nós ficámos com as vidas congeladas.
Este projeto tomou conta das vossas vidas de forma avassaladora?
Sim. Ainda hoje demos conta que temos quase tanto tempo de casados como temos este filme nas nossas vidas. O Martim tem sete anos e meio. Claro que há quem diga que dos projetos mais difíceis resultam os melhores, mas nós vimos os nossos sonhos congelados. Quando isto aconteceu estávamos prontos para começar, ganhámos o subsídio e logo depois congelaram tudo. Também por isto decidimos ir para Macau, porque estávamos a ficar muito zangados e não queríamos ficar à espera que o ICA ou a secretaria de Estado se decidissem. Sentimos que, se não podíamos fazer mais pelo filme, podíamos fazer mais por nós. Não quisermos ficar reféns de uma trapalhada politica. Mas sobretudo não queríamos ficar ressabiados nem zangados com o cinema. E eu também estava numa fase em que sentia que precisava de dar uma volta na minha vida, porque, não é que não goste de fazer novelas, mas estava cansada. Já tinha feito a boa, a má, a pobre e a rica.
Nunca pensaram tomar uma atitude mais radical, como desistirem ou assumirem as rédeas financeiras do filme?
Desistir, não. Não somos pessoas para desistir. Já a outra hipótese seria muito difícil. Já acho que foi de uma grande coragem do Luís Urbano e da produtora O Som e a Fúria, arrancar para a rodagem sabendo que só havia dinheiro para a rodagem. Não havia dinheiro para depois acabar o filme. Em setembro do ano passado ainda fomos a Veneza, a um programa de apoios com vários possíveis coprodutores que só apoiam filmes que já estejam financiados a 70%. Como o filme já estava filmado foi possível levar um pequeno teaser de sete minutos. Fomos um case study porque em duas horas o filme estava financiado, com dinheiro da Líbia, de um fundo de risco, e apoio da The Match Factory, que é distribuidora, e a Memento Films, que também é distribuidora, e que abrem a perspetiva de o filme circular pelo mundo e ser visto por mais pessoas. Antes o Ivo tinha estado num pitching em França, que é um mercado muito importante, em busca de mais financiamento, numa altura em que ainda estava tudo congelado, e o que disseram foi: “Se vocês não conseguem garantir que o vosso governo vos entrega o dinheiro que ganharam, como é que nós podemos investir?”. Ainda passámos vergonhas destas. Houve sempre muitos avanços e recuos para este filme. Sentimo-nos muitas vezes de mãos e pés atados.
Esteve sempre definido que o papel feminino seria teu?
Sim, acho que sim. [risos] As manas Lobo Antunes aprovaram. Mas eu não exigi nada. Aliás, lembro-me do Ivo me dizer: “Oh, Margarida, agora escrevi isto tudo e são só papéis masculinos, não tenho papel para ti”. E eu disse: “Oh amor, depois escreves outro!”. Mas a verdade é que acho que também só me dei conta de que não haveria um papel feminino mais tarde. Felizmente o Ivo resolveu incluir e trazer para primeiro plano a Maria José e a história de amor dela com o António Lobo Antunes.
Como foram as filmagens?
As verbas foram desbloqueadas, ao fim de quase três anos, na mesma altura em que eu aceitei fazer a novela “Mar Salgado” e vim para Portugal. Acabou por ser o encaixe perfeito, porque o Ivo veio fazer a preparação do filme, enquanto eu fiz a novela. E entretanto acabo a novela e vamos filmar porque também havia pressa de conseguir ter o filme pronto a tempo de poder tentar ir ao festival de Berlim. Mas quanto às filmagens, era uma exigência que o filme passasse por Angola, mas isso implicou muitos constrangimentos e mais contratempos porque gravaram literalmente nas Terras do Fim do Mundo. Mas eu não fui a Angola, só rodei um dia, porque só tenho quatro cenas, em Lisboa. Depois, na montagem, o Ivo decidiu que queria que fosse eu a ler as cartas. Primeiro ainda tentou outras soluções e eu, confesso, desejosa para ler as cartas! [risos] Mas calada, porque temos um respeito mútuo muito grande.
Mas foi difícil essa gestão entre marido-realizador e mulher-atriz?
Conheço o olhar dele e todas as quatro cenas onde eu entro são completamente diferentes e ele disse-me sempre “Não te preocupes que vais ficar muito chique” [risos] De resto, nunca quis impor nem sugerir uma opção que lhe criasse uma obrigação. No fundo queria que ele chegasse lá sozinho! [risos] Porque, para mim, ser eu a ler as cartas, uma voz feminina, era ser representativa de uma geração de mulheres que ficou silenciada com a guerra, que perdeu maridos e filhos ou que os viu regressar diferentes. Ser a minha voz prestava homenagem a todas essas mulheres, até porque sempre disse ao Ivo que não se podia esquecer que esta era uma guerra de mulheres. Quando me disse que sentia que tínhamos de fechar um ciclo e que, se a ideia para este filme surge comigo a ler as cartas ao Martim, ainda na minha barriga, teria de ser eu a lê-las no filme, fiquei muito feliz.
Entretanto, com a pressa toda de ter o filme pronto para tentar Berlim, mas como as crianças já estavam de férias, decidimos que íamos para a nossa casa no Alentejo com os miúdos e o Sandro Aguilar e a família dele para montarmos lá o filme. Ou seja, eu e a Jamila [mulher de Sandro Aguilar] passávamos o dia a entreter as crianças, enquanto realizador e montador trabalhavam, fechados numa sala escura. Foi neste cenário que gravámos as primeiras leituras das cartas, fechados num carro, com 40 graus. Depois, já em Macau, eu e o Ivo passámos 15 dias fechados num closet a fazer experiências que enviávamos para o Sandro que estava em Lisboa e nos ia dando o feedback. Primeiro estava depressa demais, depois lento demais, depois estava sentimental demais… Gravei com todos os tons possíveis e imaginários. Finalmente viemos para Lisboa para o Ivo fazer a correção de cor e nessa altura fechei-me duas semanas num estúdio a regravar tudo, mas o tom já estava encontrado, foi só repetir. Logo a seguir, em fevereiro, já estávamos em Berlim. Não houve tempo para respirar.
Quando soubeste que o filme tinha sido selecionado para o festival de Berlim?
Deve ter sido dos dias mais felizes da minha vida. Estava a dormir no sofá – eu estou sempre no sofá, não é? [risos] – e acordei com um grito daqueles que só pensei “Entrou em Berlim” [chora].
Como foi lá?
Foi uma Berlinale muito especial porque foi a mais portuguesa de sempre e ver a força do cinema português ali foi muito bom. Claro que estar na competição principal é uma coisa que se ambiciona mas que talvez nunca seja possível na vida. E Berlim era importante porque era o passaporte para a distribuição do filme. Estar na competição oficial em Berlim representava mais do que o festival em si, os vestidos compridos, as festas… Era estar entre os melhores dos melhores. Era a certeza de que o filme não ficaria novamente à espera, que já não precisávamos de pedir licença a ninguém.
Este projeto, além de ser sobre uma história de amor em tempos de guerra, acabou por marcar muito as vossas vidas e ter, ele próprio, a ver com a vossa própria história de amor. Isso é algo que não se pode esconder?
Acho que é justamente por isso que me emociono tanto. Este filme não só acompanhou a nossa história de amor, como foi um filme feito com muito amor, que começou num momento muito especial: a gravidez do nosso primeiro filho. Por isso nunca poderíamos desistir. [chora desbragadamente] Foram muitos anos… Fomos arranjando outras coisas, para nos sentirmos preenchidos, mas foi como se dormíssemos sempre em alerta. E acho que só agora, quando chega às salas portuguesas, é que vamos mesmo poder descansar. Este filme é indissociável da nossa história de amor e tem tanto de nós os dois que era inevitável que isso se sentisse.
E receias o vazio que vem agora?
A ressaca do trabalho já aconteceu, naturalmente mais ao Ivo do que a mim. Agora a inquietação é sabermos que está na mão do primeiro fim de semana o percurso deste filme. Também não deixamos o filho à porta da escola e viramos costas, ficamos à espera de o ver entrar. E, neste caso, quero que muita gente veja este filme. Mas já tivemos uma sessão muito especial, no 25 de abril, com ex-combatentes que estiveram ao lado do António Lobo Antunes em Angola, e, no final, eles disseram: “Foi mesmo assim, como é que vocês podiam saber?”. Isso foi o mais importante porque esta é história deles.
E o próprio António Lobo Antunes?
Ele ainda não viu o filme. Mas sei que esteve sempre preocupado com quem iria fazer o papel de Maria José. Tinha de ser bonita.
Disseste que a ida para Macau não teve só, mas teve também a ver com a tristeza associada ao processo deste filme…
Não só do filme, mas também minha pessoal. Acho que o teatro, o cinema, as artes, têm vindo a afunilar nos últimos anos, em termos de apoios das estruturas. Não quero ser injusta e generalizar, e a minha opinião, como emigrada, é que sinto uma grande diferença, em Lisboa e no Porto, de há um ano para cá. Mas há cinco anos, quando os dinheiros são congelados e a cultura perde o ministério, pareceu-nos um caminho tão longo e difícil, uma travessia no deserto. E não foi porque estava difícil que quisemos fugir, mas a certa altura não reconhecia este país e o que estava a ver não me chegava. E eu nem sou muito ambiciosa – não sonho com filmes em Hollywood, estou em Macau e nunca apanhei o jetfoil para tentar conhecer o Wong Kar-Wai. Mas quero fazer bons projetos e fazê-los bem feitos. E na altura sentimos que o nosso percurso enquanto artistas estava a afunilar. Aos 30 anos, senti-me cada vez mais asfixiada dentro do próprio sistema. Não quisemos ficar reféns.
Mas imagino que a decisão não tenha sido fácil, do género, estarem na sala, fazerem as malas e mudarem-se para o outro lado do mundo.
Foi uma decisão que foi sendo tomada. Vais ficando cansada do sistema… Entretanto fomos fazer uma grande viagem à Ásia, que é das coisas que mais gostamos de fazer, e parámos em Macau porque o Ivo tem uma relação muito especial com a região, viveu lá muitos anos, fez lá o primeiro filme, teve lá a primeira produtora, voltava regularmente para filmar Macau e a China… E de repente levantou-se a questão: “E por que não Macau?”. Depois estivemos um ano a preparar a nossa ida, mas eu ainda tinha contrato com a televisão, tinha uma peça de teatro encenada pelo Ivo e escrita pela Cláudia Lucas Chéu para o Bando, o Ivo estava a preparar a candidatura do “Cartas da Guerra” para o ICA… Entretanto eu termino a novela, fazemos o espetáculo de teatro, ele recebe o subsídio e seis meses depois os fundos são congelados… Ou seja, não tínhamos amarras.
Houve muita gente que não entendeu como é que uma jovem atriz, protagonista das maiores novelas, deixa tudo e vai abrir uma mercearia em Macau. Achavam que estavas a fugir de alguma coisa, que estavam fartos da exposição pública…
A exposição pública tem o peso que tem, mas a dada altura pode incomodar e, de facto, tenho uma liberdade em Macau como não tinha em Lisboa. Mas sobretudo acho que as pessoas não perceberam porque sempre me colocaram num pedestal no qual eu não me via. Quando as pessoas me diziam que eu era a mais isto e aquilo, que era a melhor, a mais bem paga, eu não percebia como é que viam tudo isso porque eu nunca me vi como a melhor atriz da nova geração – e acho graça porque já tenho 33 anos mas continuo a fazer parte de uma nova geração. Mas as pessoas colocaram-me num pedestal e por isso não entenderam a minha partida. Só que eu nunca considerei que tivesse o grande percurso que diziam que eu tinha. Tenho trabalhado regularmente com o António Pires, mas nunca trabalhei com o Luís Miguel [Cintra], não filmei com o [João] Canijo, não fiz Tchékov, nem Ibsen, nem Genet… O meu percurso como atriz não é tão extraordinário como as pessoas acham. Uma das razões para ter ido para Macau foi por achar que o meu percurso estava aquém das minhas expectativas. Não tinha feito o percurso próximo do cinema como gostaria, não tinha feito o percurso mais regular no teatro e estava era a fazer cada vez mais novelas. Senti que precisava de amadurecer para depois voltar com outra bagagem.
Ou seja, para ti foi muito mais fácil a opção de ir do que a leitura que as pessoas fizeram?
Sim. Não tive medo nenhum de ir porque não achei que estivesse a deixar nada de assim tão importante para trás. A decisão de ir para Macau não mudou em nada aquilo que fiz e achei que não iria condicionar em nada o que poderia fazer no futuro. A agenda do Nacional já estava fechada, a do S. Luiz, também, a da Cornucópia também… Portanto, eu já sabia que nos próximos seis meses ou um ano não iria estar a fazer nada com eles, iria estar a fazer mais uma novela.
E a ida para Macau também amainou uma certa ânsia que te caracterizava?
Sim, sim! Tinha muita pressa porque tinha muita ansiedade e muita angústia. Queria filmar com todos, ser encenada por todos, mas era incapaz de lhes bater à porta – eu sou a pior relações públicas de mim própria. Hoje em dia continuo a ser insegura porque é a minha natureza, mas tenho o meu tempo e, sem querer ser shanti, acho que o tempo se encarrega de me trazer os projetos certos, no tempo certo. Mas há nisto tudo muito preconceito português: os grandes filósofos, pensadores, historiadores chineses foram merceeiros, foram eletricistas, foram marceneiros. Porque é que uma atriz não pode ser também outras coisas, porque é que tenho de ser só atriz? Porque é que não posso estar atrás de um balcão? Estive muitas vezes e só por isso é que conheço os meus clientes e sei porque é que se vende mais sardinha e menos petinga, e sei o que é que os japoneses compram, o que é que os chineses compram… Hoje sou muito melhor atriz do que era antes de ter ido para Macau. Sou melhor atriz hoje porque fui merceeira, porque reajustámos a nossa vida toda, porque passámos a ver o país à distância, porque estivemos distantes dos nossos, porque viajámos, porque lemos… Sou uma mulher mais livre porque conquistei a minha liberdade
O facto de os miúdos ainda serem pequenos facilita esta vida entre Macau e Portugal?
Sim, por enquanto ainda estão na primária, depois logo se vê. Ainda temos uns dois anos para vivermos esta vida. E é uma vida que nos dá o melhor de dois mundos porque em Macau tenho o melhor, mas quando venho a Portugal também é para fazer os melhores projetos.
Estás a falar, por exemplo, do “Mar Salgado”, que marcou o teu regresso às novelas, desta feita na SIC, depois de anos como exclusiva da TVI?
Sim, era a melhor novela da altura, com uma equipa que acho que não se repetiu, sem querer ofender ninguém. Hoje em dia, como tenho a minha independência em Macau, posso escolher o que aceito fazer. Mas no início ainda houve outro estigma. As pessoas, ou porque acharam que eu estava fugida, deprimida ou que fui atrás do meu marido, pensavam que eu tinha deixado de representar, que era muito cara, muito difícil, que não tinha agenda… Foi complicado ultrapassar essas ideias preconcebidas. Por isso esta novela teve uma importância muito grande. Lembro-me perfeitamente do momento em que a Gabi [Gabriela Sobral, diretora de conteúdos da SIC] me ligou, para aí às 3h da manhã, e apanhei um susto. Sempre que o telefone toca, de Portugal, a essa hora, penso logo que morreu alguém. Mas não, era a Gabi a dizer que entendia que não aceitasse, mas que era irrecusável.
Ainda que agora tenhas esse olhar para a decisão de ires para Macau, na altura não tiveste momentos difíceis ou até de arrependimento?
O primeiro ano é de descoberta, da cidade e de nós próprios. E, no meu caso, foi também o ano em que nasceu o Dinis [o segundo filho]. Mas depois da novidade claro que houve dias mais difíceis. Lembro-me que, quando inaugurámos a mercearia, só contratámos staff para o fim de semana e portanto tive assim uma espécie de susto: “Ah, amanhã tenho de acordar e ir abrir a mercearia!”. E houve dias em que olhava para as latas de sardinhas e para os sabonetes e só pensava: “Ai a minha vida, o que é que estou aqui a fazer?” Mas houve uma coisa que esteve sempre presente que o Ivo me disse e que foi: “Margarida, quando não estiveres feliz, diz, que vamos embora.” E vai ser assim. Quando não fizer mais sentido, vamos embora. É chato desmontar uma casa? É, mas já desmontámos e montámos tantas! Eu, como atriz, não consigo estar instalada. Sempre que me sinto muito acomodada, isso incomoda-me. Deixo de ter desafios, medos, borboletas na barriga.
A coisa mesmo boa de ter uma mercearia é poderes finalmente ter uma caixa registadora?
[risos] E a minha é à antiga!
Já sabes que vais ouvir sempre esta história, mas a verdade é que não são muitas as atrizes que confessam que, em pequenas, sonhavam ser caixas de supermercado.
A verdade é que, desde pequenina, que eu sabia que queria fazer muitas coisas. Mas agora faço menos loja, e portanto mexo menos na caixa registadora, porque vendemos para outras lojas e tenho de tratar disso.
Apesar desse desejo infantil de ser caixa de supermercado, a verdade é que cresceste no ambiente da representação, uma vez que os teus pais são ambos ligados a esta área, enquanto produtores. De alguma forma sentes que já eras atriz ainda antes de o seres?
Sim, já era atriz antes de ter tomado a decisão de o ser. Foi uma escolha natural, para mim. Mas quando dizem que tenho muitos anos de carreira – que é uma palavra de que não gosto – até fico constrangida porque há anos que não podem ser contabilizados, porque não fazem parte de uma decisão consciente. Quer dizer, o meu primeiro papel foi aos seis anos, mas foi só porque não havia babysitter para ficar comigo e a minha mãe levou-me para o set na Curia, mas não posso dizer que isto conta. Só aos 18 anos é que decidi que queria ser atriz, que representar era o ofício que queria ter. Até lá foram as circunstâncias que fizeram de mim atriz. Nasci neste meio, era natural que viesse a trabalhar neste meio, como acontece com as famílias de arquitetos, de médicos…
Uma das coisas que sempre disseste foi que te lembras de, desde pequenina, estares sempre rodeada de adultos. Agora que és mãe pensas que podes, de alguma forma, ter perdido a infância?
Não penso como teria sido se tivesse sido diferente. Foi a infância que tive e contra isso não há volta a dar. Não lamento nem me orgulho de ter tido uma infância atípica. Mas foi essa infância que fez de mim aquilo que sou hoje – com todas as coisas boas e más que isso possa ter. E fui criança à minha maneira, muito palhaça na escola. Não tenho a síndroma da infância perdida nem vivi aos 30 anos a adolescência roubada. Mas a verdade é que desde pequena que queria ser grande.
Lá está, a pressa, a ansiedade…
Pois… Felizmente agora sinto-me mais apaziguada. Se bem que, por natureza, sou mesmo muito ativa. Nós temos casa no Alentejo, é o nosso retiro e a única casa que temos em Portugal, e é divertido pensar que somos dois hiperativos com casa no Alentejo. Quem lá vai fica cansado a olhar para nós, mas não consigo estar só parada a olhar para o sobreiro.
A primeira vez que nos cruzámos eras uma jovem de 18 anos, eu tinha 22, tu subias ao palco com “Confissões de Adolescente”, eu começava o meu caminho como jornalista. O que sobra dessa miúda?
É verdade. [risos] Essa peça infelizmente sofreu do estigma de ser teatro comercial e ainda para mais produzido por uma miúda de 18 anos que tinha acabado de montar uma produtora. E tenho muita pena que não tenha sido reconhecida a importância dessa peça para toda uma geração. Houve uma data de jovens que se viram reconciliados com o teatro com as “Confissões”, que ainda por cima era uma peça com um lado didático, na qual se falava de drogas, de sexo, de amor… Mas houve miúdas que todos os fins de semana nos iam ver, como hoje em dia vão beber copos para Santos ou para o Bairro Alto. E eu própria era uma adolescente, que queria trabalhar para a minha faixa etária. Foi nesta altura que percebi que queria mesmo ser atriz, estava também a fazer a “Fúria de Viver” e todo o dinheiro que ganhava injetava na produtora. Curiosamente foi nesta novela que conheci a Patrícia Sequeira, que continua a ser uma grande amiga e que foi diretora de projeto do “Mar Salgado”. Já estamos hoje a trabalhar no projeto do próximo ano, a nova novela de prime time da SIC que irei gravar lá para junho do próximo ano. Lá está, tenho relações de trabalho, e amizade, que se mantêm desde essa altura dos 18 anos. [risos]
Uma das coisas que mais recordo, nas inúmeras entrevistas que já fizemos, foi da tua relação amor-ódio com tudo isto. A ida para Macau, a maternidade e a chegada dos 30 anos acabaram por ser fundamentais para mudarem isso?
Estou mais apaziguada, amadureci, e tudo isso ajudou. Já plantei a árvore, já escrevi o livro, já tive filhos… Mas o ser atriz levanta-me sempre muitas questões. Mas não são questões que partilhe, são coisas em que só penso sozinha. É o meu processo enquanto mulher que quer trabalhar os seus medos, as suas fragilidades, as suas inseguranças. Uma coisa que já percebi é que não levo os personagens para casa nem para lado nenhum. Nem quero. Acabo de trabalhar e vou para casa namorar e cuidar da minha família. Preciso disso.
Descobriste que a normalidade te faz bem?
Sempre procurei a normalidade na vida, mas nunca consegui ser o padrão da senhora de saltos altos, bem vestida e sempre maquilhada. Isso não bate certo com a minha natureza, não é esse o meu padrão. Aliás, acho que continuo a ser muito miúda, há um lado de desprendimento que me caracteriza, mas hoje sou mais madura, mais tranquila, mais apaziguada. Sou mais feliz. Se calhar, Macau foi das decisões mais importantes da minha vida porque foi uma decisão que tomei sozinha, não foi uma decisão que a vida tomou por mim. E a maior angústia que pode existir é não tomarmos conta da nossa vida.