Tendo a sua origem na realidade política que se seguiu à Revolução Francesa de 1789, a esquerda correspondia aos “sans coulottes” que se sentavam à esquerda na Assembleia Nacional; a direita, essa, era personificada pelas forças conservadoras (clero, aristocratas,…) que se sentavam no lado direito da Assembleia Nacional. A partir deste momento histórico, a dicotomia “ esquerda/direita” alastrou-se, servindo para caracterizar o sistema partidário dos Estados um pouco por todo o mundo.
No entanto, hoje é uma separação em vias de extinção: a esquerda já não é verdadeiramente de esquerda; a direita já não é verdadeiramente de direita. A esquerda já não é de esquerda – o advento do Estado Social de mercado, com o acentuar progressivo da dimensão de “mercado”, a globalização económica, social e financeira, a “terceira via socialista” que transformou os partidos à esquerda, a confirmação pela (duríssima) realidade que o sonho comunista não passa de um pesadelo bárbaro, levaram a que a “esquerda” se transformasse na “nova direita”.
Por outro lado, a direita já não é verdadeiramente de direita – o amplo consenso na sociedade sobre a necessidade de intervenção estatal em diversos domínios, a consciência de que há mínimos sociais que não devem estar à mercê do livre jogo das forças do mercado, as novas tendências sociais, promovendo uma sociedade cada vez mais liberal em termos de costumes e maneiras de vida e, enfim, a questão da sobrevivência no “mercado eleitoral” conduziram à “esquerdização” da direita.
2.Hoje, a distinção política mais relevante é aquela que aparta os defensores da liberdade e da globalização – das forças conservadoras, retrógradas, imobilistas, defensoras apenas das suas clientelas políticas. No caso português (e, grosso modo, europeu), os primeiros correspondem aos partidos ditos de direita; os segundos (conservadores e inflexíveis, defensores do “status quo”) correspondem às forças ditas de esquerda. No entanto, qualquer partido que se assuma de “direita” ou “centro-direita” não pode alhear-se da defesa de um conjunto de valores essenciais. Valores, esses, amplamente partilhados pelos eleitores que se revêem num modelo político baseado na liberdade individual e na meritocracia.
Infelizmente, a direita portuguesa encontra-se ideologicamente perdida, estrategicamente desorientada e tacticamente desastrada. A direita portuguesa precisa – rapidamente e em força – de um retiro espiritual. Há algo de errado na direita portuguesa, o que agrava o afunilamento do sistema partidário português (e, logo, por consequência, do sistema político nacional) gerado pela constituição da “geringonça”. Senão, tomemos como exemplo as declarações de um expoente intelectual máximo da direita portuguesa – António Lobo Xavier. Para este ilustre advogado e pensador, a liberdade individual deve ceder perante outros interesses, designadamente “para combater as desigualdades”, pois “combater as desigualdades custa muito caro”. E, pronto: para “ combater as desigualdades”, o Fisco (o braço-armado do Estado para controlar tudo o que fazemos, sem lei, nem roque) poderá ingerir-se na vida privada dos cidadãos, sem freio, nem controlo.
3.Mais: António Lobo Xavier não vê qualquer problema numa lei que autorize o Fisco, por vontade unilateral, a aceder aos registos das contas bancárias dos contribuintes (ou seja: dos cidadãos). Isto porque, avança Lobo Xavier, do que se trata é apenas o “saldo das contas bancárias”. Se temos passivo, se temos activo. Portanto, como é só o saldo, o Fisco pode ingerir-se à vontade na vida dos cidadãos!
Parece que António Lobo Xavier, como advogado ilustre que é e uma referência intelectual para a direita portuguesa, não equaciona problemas tão elementares (mas tão importantes para a nossa liberdade!) como os meios pelos quais os cidadãos poderão controlar a informação que, de facto, é fornecida ao Estado pelos bancos, as razões subjacentes à divulgação dessa informação – e, não menos importante, quais as consequências se o Estado extravasar os seus poderes, conhecendo matéria para a qual não está legalmente autorizado…
Aplicando a mesma lógica de António Lobo Xavier, o Fisco pode pôr e dispor sobre a sua vida: o “combate à desigualdade” é muito caro, pelo que justifica todos os ataques à liberdade individual dos cidadãos…É uma formulação suave da teoria maquiavélica de que os “fins justificam sempre os meios”. Pensamento que, aliás, coloca em causa o ideário liberal que tanto custou – e custa! – a conquistar: sem respeito pela liberdade individual dos cidadãos, a democracia será sempre uma “democracia totalitária”. Que mais não é do que um totalitarismo disfarçado de democracia…
E se amanhã, o legislador português aprovasse uma lei concedendo poderes à Direcção-Geral de Saúde para criar um registo com o peso de todos os cidadãos portugueses para “combater a obesidade”, invocando que a “obesidade custa muito dinheiro”? Para António Lobo Xavier, a medida seria perfeitamente conforme à Constituição – só haveria problema se o Estado exigisse informações sobre o que nós, de facto, ingerimos…se fast food, se sobremesas, se cozidos à portuguesa…Agora, um registo do peso não haverá problema. Este é apenas o saldo do que ingerimos e o que não ingerimos, o que fica no corpo e o que não fica! Por amor de Deus!
4.Enfim, quando José Pacheco Pereira (um maoísta infiltrado no PSD) parece um liberal convicto, um verdadeiro defensor do ideário de direita confrontado com António Lobo Xavier – está tudo dito. Não vale a pena avançarmos mais argumentos. Agora, quando uma pessoa que, para nós, é uma referência intelectual da direita portuguesa, revela ter uma visão da liberdade e da defesa dos direitos individuais dos cidadãos face ao Estado ainda mais restritiva que a do próprio Jorge Coelho – não podemos deixar de concluir que há algo de muito errado na direita portuguesa.
5. Ao contrário do que muitos julgam, a ideologia, no mundo contemporâneo, assume-se como um elemento central para o progresso político das sociedades. Ideologia implica “ideias”, “ideias” de organização, ideias de acção, “ideias” de desenvolvimento. Sem pensamento, não passaremos deste modelo de Estado tentacular, despesista, monstruoso, que se limita a cercear as nossas liberdades individuais. A navegação à vista – como a que temos hoje, desde a extrema-esquerda à direita – só nos levará ao naufrágio…