O ex-administrador da RTP Luís Marinho abandonou esta semana a estação, após 15 anos no grupo de media público. Quase a fazer 62 anos, sai lançando várias críticas ao estado da empresa e ao atual modelo de governação que no seu entender é inexistente. Luís Marinho pede apenas que a administração que está em funções há um ano e meio preste contas e que haja um parecer do Conselho Geral Independente que, segundo diz, de independente não tem nada. Marinho critica ainda o facto de Nuno Artur Silva acumular o cargo da RTP com o de dono de um canal de cabo (canal Q) e de Daniel Deusdado, diretor de informação do canal público, ter uma produtora em nome da mulher – que vende programas à própria RTP.
Saiu agora da RTP e teceu duras críticas à gestão da empresa através da sua carta de despedida. Saiu amargurado?
Não, saio com uma enorme preocupação em relação à empresa e quando digo isto não quero dizer que sou uma pessoa muito importante. A verdade é que pelo menos ao longo dos últimos 10 anos fui assumindo nas diversas administrações uns papéis interessantes dentro da empresa e outros que foram de certa forma estratégicos. A RTP estava numa situação catastrófica do ponto de vista financeiro, o que se refletia obviamente em tudo, como nos conteúdos. E o que é verdade é que as diferentes administrações, começando pela de Almerindo Marques, tomaram as rédeas da empresa e definiram o plano estratégico que do ponto de vista financeiro era absolutamente crucial.
E qual era essa estratégia?
Pretendia-se que o serviço público fosse concorrencial no bom sentido, isto é, que se impusesse ao público no bom sentido, independentemente das estações privadas terem isto ou mais aquilo. O que interessava era que o serviço público enquanto um serviço para os portugueses fosse de relevância, interessante e que tivesse um acolhimento dos públicos. E essa estratégia foi desenvolvida até 2015 com mais ou menos nuances porque as administrações que se sucederam, a de Guilherme Costa e depois Alberto da Ponte caminharam sempre nesse sentido porque era importante que os dois meios e, falo tanto da televisão como da rádio, fossem realmente competitivos. Mas competitivos no bom sentido, ou seja, que tivessem público e que este preferisse os conteúdos que o serviço público disponibilizava.
Uma estratégia que sofreu uma rutura com a atual administração?
A atual administração não fez uma mudança de estratégia, fez um corte radical com essa estratégia e passou a olhar para o serviço público como um serviço de minorias, alternativo e que faz aquilo que os outros não querem ou não lhes apetece, ou até mesmo, não podem fazer. Isto não é serviço público. Se olhássemos, por hipótese absurda, para um serviço de saúde que só fizesse aquilo que os serviços privados não quisessem fazer o que é que sobrava para o serviço público de saúde? Isto é uma coisa absurda. Os serviços públicos devem liderar e definir até o mercado e os privados que são essenciais devem-se submeter a este tipo de regras. Porque é que o serviço público de media, tanto televisão como rádio, devem ser um serviço residual quando todos os outros serviços públicos não o são. Tanto que os serviços públicos são pagos pelos portugueses e por isso têm de dar o melhor e têm de ser um serviço de excelência em todas as áreas. Não pode haver áreas proibidas para o serviço público e esta forma abruta de cortar com este tipo de estratégia é que me revolta. Se tivessem apresentado uma estratégia completamente diferente, mas para atingir um fim semelhante já não estava a dizer nada. E quero dizer muito claramente que o meu problema não é ter sido afastado do cargo, não tenho qualquer problema com isso, é normal que uma administração que chegue queira ter as suas pessoas de confiança. Não há aqui nenhum problema pessoal, há um problema com a empresa. Dediquei 15 anos inteiramente à empresa, desenvolvi trabalho que se viu e que penso que é reconhecido, penso que tenho uma palavra a dizer. E a palavra a dizer é que a seguir este rumo a empresa de serviço público de televisão vai desaparecer.
E achou que seria a hora de sair?
A atual administração deu-me a área dos projetos especiais e quando estou num projeto integro-me totalmente. Mas neste neste último ano e meio achei que já era muito tempo para estar a fingir, apesar de me terem dado umas coisas para me entreter e para estar ocupado. Éramos três pessoas e desenvolvemos alguns sites muito interessantes. O primeiro foi de extrema-esquerda e estávamos a desenvolver um outro que espero que seja concluído sobre a descolonização. Mas desenvolvemos os projetos sem meios, era uma coisa quase artesanal. Percebo perfeitamente que quando entra uma nova administração não tem de me pôr como diretor ou diretor geral, mas sem falsas modéstias tenho um conhecimento geral dentro daquela empresa que muito dificilmente alguém tem. Dentro da própria RTP desempenhei uma série de cargos que poucos funcionários ao longo de toda a história da televisão o tenham desempenhado. Fui para lá como subdiretor de informação da televisão, depois fui praticamente diretor geral da rádio, seguiu-se diretor de informação da televisão, durante quatro anos fui administrador e depois diretor-geral de conteúdos. Acho que foi uma experiência riquíssima e agradeço muito a quem me deu estas oportunidades, mas uma administração minimamente interessada na empresa não poderia dispensar este tipo de experiência, como não poderia dispensar pessoas como o antigo diretor de programas, Hugo Andrade. E mais uma vez chamo a atenção que não estou a falar de cargos, até podiam dizer “não damos cargo nenhum, mas precisamos de si”. O problema é que estas pessoas foram completamente afastadas e a atual administração e direção não apresenta qualquer tipo de estratégia. Não pensem que estou ressabiado ou que estou chateado. Zero, não estou nada zangado, nem estou nada ressabiado, só estou preocupado com a empresa porque eu e outros colegas demos muito à RTP. Arranjei inimigos, não me arrependo rigorosamente nada do que fiz, mas no mínimo era tratarem-me com dignidade que foi coisa que não existiu. Podem inventar o que quiserem mas trataram-nos como corpos estranhos.
Daí a decisão de sair…
Sim, até aqui estava com os projetos especiais e o Hugo Andrade não faz rigorosamente nada, cumpre horário neste momento. Isto é criminoso em relação a uma empresa. Gostei de fazer o trabalho, mas analisando a relação salário e o trabalho que estava a fazer achei que era uma situação escandalosa. Tinha um salário alto por causa das funções que fui desempenhado dentro da empresa e para o trabalho que me atribuíram era um bocadinho excessivo. Mas não fui eu que pedi para fazer esse trabalho, se me tivessem dado muito lá estaria a fazê-lo. Decidi que tinha de sair nesta altura tendo em conta as circunstâncias. Mas achava que tinha de sair dizendo alguma coisa. Não queria sair calado e sei que há pessoas lá dentro que sabem bem o que se passa. A mim ninguém me pediu opinião porque se alguma vez a atual administração me tivesse pedido opinião sobre o estado da empresa teria dito exatamente aquilo que escrevi e naturalmente até teria dito mais. Mas tendo em conta as pessoas que estão nesses cargos nunca pediriam isso.
Optou por dar a sua opinião na carta de despedida?
O que me levou a escrever esta carta não foi a minha situação pessoal porque estou completamente tranquilo. Vou fazer 62 anos, já trabalhei bastante, claro que não me importo de continuar a trabalhar. Tenho é uma questão em relação à empresa. Podem-me acusar do que quiserem, mas não me podem acusar de não ter dado a cara para defender a empresa e, muitas vezes, contra a tutela como foi nos últimos anos quando veio a história de privatizar a RTP, vender o canal 2, eu e os meus colegas demos publicamente a cara contra essas medidas. Não me venham com a história que éramos todos amigos dos ministros, façam uma avaliação, mas façam uma avaliação séria. Qual foi o nosso trabalho, quais foram os resultados do nosso trabalho e qual foi a nossa posição ao longo destes anos em relação às administrações, o relacionamento das administrações connosco, a independência que nos foi dada e que sempre garantimos em relação às administrações – eu entretanto fui administrador. Mas as pessoas percebiam, até podiam criticar e achar que o modelo de governação deveria ser outro, mas havia um esquema. Agora ninguém sabe quem manda, ninguém pede contas a ninguém e o resultado está à vista.
Na sua carta de despedida chega mesmo a dizer que a RTP é agora uma empresa dos anos 80 com diretores disfarçados de consultores…
Quando todas as empresas modernas e, nem falo só das empresas de media, são transversais, abrangentes do ponto de vista da sua forma de gestão têm cada vez menos direções fechadas. São direções abrangentes obviamente com diferentes ramos e com diferentes especialidades e foi esse o caminho que se fez nos últimos dez a 15 anos na RTP. De repente voltou a assistir-se a mais um corte com esta tendência e não me lembro, talvez nos anos 80, que tivesse havido tanto diretor, subdiretor, diretor de diretor. Isso é absolutamente verdade e posso prová-lo. Além disso, existe uma série de indivíduos que são apresentados como consultores e que na prática são diretores. E são diretores porque impõem regras dentro da empresa a que as outras pessoas se têm de sujeitar, isto é inadmissível numa empresa pública.
Há falta de transparência?
Não há transparência nenhuma e quando temos uma coisa que se chama Conselho Geral, não consigo chamar independente porque é inexistente, o que este órgão está a fazer? Porque na prática eles são a tutela. A invenção foi do ministro Poiares Maduro que quando criou esta estrutura, este esquema de governação, copiou se bem me lembro o da BBC e a BBC já tinha acabado com isso quando foi implementado em Portugal porque percebeu que esse modelo não funcionava. O que se criou com este modelo? Ninguém sabe quem manda e ninguém sabe a quem pedir contas se a empresa entrar em colapso.
Como está o serviço público vai tornar-se insustentável?
A teoria que foi defendida no início por esta administração e os papéis que foram apresentados como grandes estratégias, são papéis banais com uma estratégia inexistente. E mesmo assim, o que foi definido ali, nem sequer está a ser seguido. Lembro-me de um caso que foi a questão do futebol que foi absolutamente crucial para a demissão do anterior conselho de administração. Foi um crime de lesa majestade o conselho de administração ter autorizado a compra da Liga dos Campeões. Pois bem, se não fosse a Liga dos Campeões, se não fosse a área de programação que era totalmente criticada por esta administração e por estas direções por serem conteúdos de grande entretenimento com formatos estrangeiros, tirando há uma semana desta parte, tirando um ou outro dia em que há futebol, a RTP está abaixo dos 10% de audiência, ou seja, está a atingir o nível mínimo. Abaixo disto já nem sei o que é que pode acontecer para um canal com a dimensão e com a história que a RTP tem. Dizem muito que são contra as ditaduras de audiências e que não querem saber das audiências, eu percebo porque é que não querem saber nem querem ser medidos porque se o produto é mau quem é que quer ser medido por esse produto?
Mas as televisões dependem das audiências…
É importante ter retorno e, acima de tudo, retorno em termos de preferência. Estas pessoas parece que chegaram agora, parece não, a maior parte chegou agora a este mercado porque algumas delas vêm de mercados pequeninos, de canais de cabo, de coisas praticamente inexistentes em termos de audiências, outros vieram de pequenas produtoras, onde continuam com interesses. Tenho a imagem de que um indivíduo que navega um veleiro muito dificilmente será comandante de um navio mercante. Há situações que não entendo como uma empresa com a dimensão, com a história e com as responsabilidades que a RTP tem está entregue a pessoas sem o mínimo de condições para governar aquela empresa.
São provenientes de realidades diferentes?
Isso não seria uma condicionante se conseguissem adaptar-se ao meio. Ninguém quando avança para um determinado projeto é obrigado a saber tudo, mas é obrigado a aprender e é obrigado a, pelo menos, ter humildade de não afastar as pessoas que percebem da empresa. E não estou a falar da mim, estou a falar de outras que estão sem fazer rigorosamente nada, apenas a cumprir horário. Até percebia que isso acontecesse se víssemos obra feita, se víssemos que as coisas estavam a caminhar, mesmo com outra estratégia. Mas o que vimos, do ponto de vista dos resultados, é um desastre. Ainda podíamos dizer que nos primeiros meses há sempre um período de adaptação, mas estamos a falar de um período de um ano e meio. Ao final de um ano e meio já não há desculpa, têm de apresentar trabalho e, ainda por cima, uma grande percentagem do que vimos em antena no canal 1 é tudo aquilo que é produto destas novas direções sem audiências. Por favor analisem os resultados e vejam-nos em termos de audiências e em termos de preferência do público. Vejam quanto custam porque há um indicador importante que é o indicador custo por espetador. Essas contas são fáceis de fazer, façam-nas e mostrem porque gostava de conhecer esses valores.
E como vê a situação de um administrador ter um canal por cabo e ser dono de uma produtora e o diretor de programas ter também uma produtora e contratarem produtos para a RTP dessas mesmas empresas?
Eticamente é absolutamente reprovável. Convidar essas pessoas, uma para a área da administração e outra para a área de direção, merece a reprovação do ponto de vista ético. Legalmente acho que devia ser avaliado, que eu saiba, o administrador Nuno Artur Silva ainda é proprietário das suas produções e o diretor de programas, Daniel Deusdado, tem a produtora em nome da sua mulher. Como também é reprovável contratarem guionistas e apresentadores dos seus canais e das suas produtoras. E ainda não estou a pôr aqui nenhuma questão legal, por enquanto.
E está a pensar em fazer isso?
Por enquanto não, nem sou jurista. Mas do ponto de vista ético gostava de saber se em administrações anteriores se isto tivesse acontecido o que teria acontecido. Teria caído o Carmo e a Trindade e mais não sei quantos edifícios ali à volta. Se isto tivesse acontecido na administração de Alberto da Ponte, na administração de Guilherme Costa ou na administração de Almerindo Marques o que teria acontecido? Foram administradores escrutinados. Nem eles nem as pessoas que nomearam tinham esse tipo de problemas, ninguém era dono de coisíssima nenhuma. E não entendo porque é que há tanto silêncio em torno disto. Isto tem de ser explicado e o Conselho Geral já se devia ter pronunciado há que séculos sobre esta questão. Tem de ter uma opinião nem que seja para dizer que tudo isto é legal, que tudo isto está certo e não há aqui qualquer tipo de problema.
Mas se estivéssemos a falar de uma empresa privada, um gestor no final do ano que não apresentasse resultados provavelmente seria convidado a sair…
Exato, mas aqui não. Nalguns casos até houve direito a prémios. Está na hora de fazer contas e de dizer o que se esperava deste esquema de governação, sobretudo deste Conselho Geral. É desejável que finalmente apresente contas e diga qual é a avaliação que faz destas direções e destas administrações que eles próprios nomearam.
Na sua carta também falou da existência de capelinhas. O que quis dizer com isso?
Está relacionado com o esquema que as pessoas falavam muito que existia nos anos 80 em que havia muitas direções e direções de direções. O que isto dá? Uma pessoa governa a sua capelinha e não quer saber das outras capelinhas, ou seja, cada um trata de si. E foi este espírito que foi sempre combatido. Estávamos já num caminho ótimo, em que as pessoas da empresa percebiam como é que toda a empresa funcionava e tinham informações sobre áreas que não eram delas e isso era importante porque só assim se vive uma empresa. E o que acontece agora é que com tanta direção não há essa informação. E dou-lhe um exemplo, a rádio que só tinha um diretor para os diferentes canais, agora cada canal tem um diretor. Isto é apenas um exemplo, mas há dezenas deles. A direção de informação da RTP tem nove diretores, penso que é um recorde absoluto. Também fui diretor de informação e tinha seis e não era das direções mais pequenas, mas seis para nove vai uma diferença grande. E não percebo a urgência de contratar pessoas de fora. Não estou a dizer que a empresa não deveria ter contratado uma ou outra pessoa que faria sentido e que seria uma mais-valia, mas há muitos casos em que tenho dúvidas. Mas mais uma vez, daqui a um determinado período têm de prestar contas e a razão de ser desse tipo de contratações.
E acaba por ser incoerente com a situação de precariedade de muitos trabalhadores da empresa?
Isso é outra questão que ainda não posso avaliar porque não tive acesso a estas contas e se não as tive até agora também não as vou ter. Mas posso dizer que houve uma grande quantidade de prestadores de serviços que foram admitidos ao longo deste ano e meio. E estou a falar de larguíssimas centenas de pessoas. Tudo isto tem de ser avaliado, até porque estamos a falar de uma empresa pública. Se estivéssemos a falar de uma empresa privada o patrão que se pronunciasse, mas aqui não é assim. Isto é uma empresa pública, tem regras escritas e estas têm de ser seguidas. Se as anteriores administrações foram tão criticadas e tão escrutinadas porque é que isso não acontece com a atual administração? Eu, enquanto diretor, fui umas quantas vezes fui à Assembleia da República à comissão de ética por uma série de motivos, uma das vezes por termos acabado com um programa de opinião na rádio. O que é que se passa agora? Será que agora não se passa nada?
Na carta também crítica determinados comentadores que foram contratados…
Isso é uma questão que a mim sempre me fez impressão, assumo que até pode ser uma questão pessoal. Mas se eu disser que não gosto de determinado jornal, ou que achava que aquele jornal não fazia sentido e por isso devia acabar, ou que aquela rádio devia acabar ou que aquela televisão devia acabar, a mim nunca me passaria pela cabeça fazer um comentário nessa televisão, ou nessa rádio ou nesse jornal. Agora indivíduos que durante anos e anos, como é o caso de José Manuel Fernandes, que dizia que o serviço público devia acabar, é contratado? Quando fui diretor de informação da RTP esse senhor já tinha esses comportamentos. Aliás,a primeira coisa que fiz foi proibir esse senhor de fazer mais comentários. Não temos de pensar todos a mesma coisa, mas outra coisa é assumir que a RTP não faz sentido. Então, se não faz sentido, o que é que está a fazer nessa empresa e a receber dinheiro? Agora esse indivíduo está por lá e as pessoas que o convidaram no mínimo só podem ter um problema de amnésia ou andam muitos distraídas.
Qual seria o caminho desejável para a RTP?
A RTP tem de se impor pelos melhores produtos e há uma coisa que sempre defendi, a RTP não deve estar proibida de fazer qualquer tipo de produto. Porque é que a televisão pública deve estar proibida de fazer novelas ou de fazer programas da tarde? A RTP tem é de fazer melhor, com mais qualidade e de forma diferente, mas não pode estar proibida de fazer qualquer tipo de produto que entenda, que considere do ponto de vista estratégico que é melhor para a empresa. Porque é que não pode fazer uma novela? Porque as outras fazem? Mas isso é muito interessante porque quem é que começou a televisão em Portugal? A RTP começou em 1957 e por hipótese absurda se as outras começassem a fazer programas de todos os géneros possíveis e imagináveis, a RTP fechava. Isso na perspetiva de algumas pessoas que defendem que a RTP tem de fazer aquilo que os outros não fazem. Se as privadas desatassem a fazer todos os géneros possíveis e imagináveis então a RTP teria de fechar porque não podia fazer nada. Dos muitos anos que tenho disto até já ouvi indivíduos a defenderem que o Telejornal devia mudar de hora, porque os outros começam à mesma hora. Como se o Telejornal tivesse sido inventado pela SIC ou pela TVI. São estações por que tenho o maior respeito e até trabalhei nas duas e isso não é um ataque às televisões privadas, é um ataque às pessoas que defendem isso e até defendem que a RTP não deveria ter praticamente informação nem canais de informação. Se acreditamos que é realmente fundamental para a democracia existir um serviço público forte de media, isto é, rádio, televisão e multimédia, então o que temos de fazer é defender a empresa e os produtos que a empresa tem. É preciso defender o serviço público e apresentar uma estratégia que é uma coisa que não vejo na atual administração.
A RTP3 e o canal Memória vão estar na TDT, pelo menos, o canal de informação poderá sofrer um impulso em termos de audiências?
Em primeiro lugar, do ponto de vista financeiro, esta passagem para a TDT é um negócio absolutamente ruinoso. Isto vai custar à empresa qualquer coisa como 10 milhões de euros pela perda de receita que vai implicar e pelos custos que vai implicar pelo pagamento do sinal da TDT. Podem dizer que faz sentido porque é serviço público, mas são dois canais completamente residuais e que infelizmente estão quase em coma induzido e depois pretende-se mostrá-los em sinal aberto. A TDT neste momento nem chega sequer a 10% da população, o que está a acontecer é tentar finalmente dar quase um aval à TDT que acho que é um negócio que devia ter sido investigado e analisado com todo o pormenor sobre a forma como foi viabilizado e conduzido ao longo dos anos – mas isso são contas de outro rosário. Mas o que é que isso vai acrescentar à TDT e às pessoas? Tenho as maiores dúvidas. Isso é uma história antiga que já passou por várias administrações, que sempre colocaram determinadas questões: nós avançamos mas queremos saber quais são as contrapartidas. Isto é serviço público, mas é uma empresa. Agora esta administração está sempre de acordo com tudo, sobretudo se as propostas vierem de determinadas áreas políticas. Vamos ver quais serão os resultados.
Por isso é que os privados não têm grande interesse na TDT?
Exato, porque aqui o problema é que as pessoas estão sempre em bicos de pés, é a estratégia de querer ficar. Não é uma estratégia em prol da empresa, é uma estratégia em querer ficar. E se queremos ficar temos de dizer que sim a tudo.
Acha que a atual administração se vai manter assim que terminar o mandato, no final do próximo ano?
Acho que estão a trabalhar para isso e neste contexto qual é o impedimento?
A não ser que se faça a tal avaliação?
A avaliação pode ser feita entre as pessoas. Mas como não vejo nenhuma separação evidente entre a tutela que é o Conselho Geral e a administração, também não vejo que possa haver uma avaliação séria e isenta. Quando ouço dizer que nós não temos a ditadura das audiências é quase a mesma coisa do que dizer nós não somos avaliados.
Há pouco disse que a RTP3 estava em coma induzido. A que se deve este fracasso?
Agora chama-se RTP3, já se chamou RTP Informação, RTPN, já se chamou muita coisa. Eu próprio já tive responsabilidades nessa área e assumo todas as responsabilidades de todo o mal que foi acontecendo. Foi sempre um problema e foi sempre difícil de gerir até pelo peso que a própria informação tem no canal 1 e depois isso é difícil ser compatibilizado com um canal de informação. Estava-se a definir neste último ano antes da entrada da nova administração finalmente uma estratégia que apontava para um canal de informação de grande proximidade com uma grande componente regional. Estava a ser definida e praticamente concluída uma rede de correspondentes, mas tudo isso terminou e, de repente, aconteceu outra coisa. Foi sempre um canal problemático, mas havia um plano e uma estratégia para que o canal crescesse e para que a informação fosse cada vez mais próxima das pessoas porque penso que o serviço público também tem de ser isso.
E acharam que mudar a imagem e o nome fosse suficiente?
Mas isso é a estratégia normal de quem não conhece as coisas a fundo e acha que chega aos sítios muda a cor, dá um nome diferente e que as coisas começam a funcionar. Claro que não funcionam. Nada destas mudanças fizeram sentido, até já cheguei a ver programas humorísticos dentro do canal de informação.
Uma das eternas críticas que são feitas diz respeito ao financiamento da RTP em que este é assegurado pelas contribuições dos contribuintes. Já se deveria ter encontrado outra solução?
Apesar de tudo esta solução é a melhor e dá alguma independência.
Então acha que faz sentido os consumidores com televisão por cabo continuarem a pagar a fatura?
A não ser que um dia as pessoas venham dizer que não precisam do serviço público para nada. É importante que continue a existir esse serviço e que o paguem através da contribuição do audiovisual. Aliás, é um modelo que é seguido noutros países. Além disso, o serviço público tem uma função importantíssima que é ser uma espécie de regulador e de dar voz às minorias. No fundo, as pessoas pagam para que seja acessível a toda a gente. Mas se o produto que ofereço é tão de nicho o que é que isso interessa? É acessível a todos, mas o produto que ofereço só interessa a cinco ou 10% das pessoas. Isto faz algum sentido?
Nesse caso faz sentido continuar a passar touradas em canal aberto?
Isso já é uma questão de gosto. Não sou totalmente contra e não sei se faz sentido proibir touradas no serviço público tendo em conta que há milhares e milhares de pessoas que gostam. Agora a questão ética do animal é um debate que se pode e deve fazer. Se disser que o serviço público deve transmitir 20 ou 30 touradas por ano também acho que não deve, mas pode ter algumas para satisfazer as pessoas que gostam. Pior que as touradas são alguns programas que vemos nas outras televisões.
São quase touradas humanas…
Está a dar uma boa deixa, são praticamente touradas humanas, são uma aberração que não fazem nenhum sentido e que até têm muita audiência. Aí é onde o serviço público faz diferença.
Passou por vários cargos dentro da empresa qual é que vai deixar mais saudades?
Dos últimos 15 anos gostei muito de ter estado na rádio e acho que fizemos um trabalho muito interessante quando fui diretor, e depois gostei de estar na direção de informação da televisão, sem dúvida nenhuma.
Nessa altura sentiu algum tipo de pressão?
Mas o que é pressão? São telefonemas? Se algum diretor de informação me garantir que nunca recebeu um telefonema, uma mensagem, um email de alguém por não ter gostado e, quando falo do poder falo do governo, de empresas, de sindicatos, etc. de determinada notícia que me diga porque até gostava de o conhecer. Nós aguentamos as pressões se mantivermos as nossas posições. Muitas vezes as pessoas quando nos telefonam até podem ter razão, não somos donos da razão. Vamos imaginar um ministro que me telefona e me mostra por A mais B que determinada notícia está errada vou dizer o quê? Que sou o diretor? Nós trabalhamos todos os dias com milhares de informação que nos rodeiam, umas falsas, outras verdadeiras, outras assim assim. Temos o trabalho de as filtrar, de as confirmar, mas nunca temos a certeza se aquilo que achamos que está pronto em formato de notícia está completamente certo ou completo. Outra coisa é alguém ligar a dizer que não gostou da notícia porque a prejudica. Temos é de estar abertos para esses telefonemas, para essas cartas, emails, aquilo que for. Chamar a isto tudo pressões não está correto. Enquanto estive na direção havia aí um indivíduo que dizia que estávamos ao serviço do governo por causa dos incêndios, quando eram coisas completamente fantasiosas porque tínhamos decidido em reuniões de direções determinadas questões em relação aos fogos.
Mas não passavam tanto na televisão como passam agora?
Sempre foram transmitidos. Agora parece que estamos outra vez nesse clima em que só falta inaugurar a época dos incêndios, tal é a loucura em torno deste tema. Mas houve uma altura que parecia que havia uma competição entre repórteres a ver quem é que morria lá no meio. Ou seja, quanto mais perto do incêndio melhor, era uma loucura. O que tentámos fazer – em reflexão interna e não tinha nada a ver com governos ou com bombeiros – foi arranjar uma forma para defender os repórteres. Se a TVI estava a cinco metros, nós tínhamos de estar a três, mas a SIC estava a um então alguém tinha de ir para o meio do fogo. Criámos uma espécie de cartilha debatida na redação para manter a distância e não ir atrás de duas ou três árvores que estavam a arder. Lembro-me de um dia em que não abrimos o noticiário com incêndios e acusaram-nos de estar a proteger o governo e até deu origem a idas à comissão de ética, envolveu a ERC.
O aparecimento da CMTV não contribuiu para o regresso a esta loucura?
Acho que sim. Não tenho uma boa relação com essa marca, mas do ponto de vista da proximidade – pode não ser feita da melhor maneira e não é, da informação –, mas as pessoas eles estão a ganhar pontos. Muitas vezes, pelos piores motivos. É uma pena que não aproveitem isso para fazer uma informação mais interessante, mas vai ao encontro da informação do jornal e nisso são totalmente coerentes.
Gostaria de voltar atrás no tempo?
Ao longo destes anos cometemos tantos erros. Tenho 35 anos de jornalismo e 20 e tal deles em cargos de direção é evidente que me enganei muitas vezes. Mas fazendo o balanço, posso-me orgulhar do trabalho em que participei. Não gosto de dizer que fiz, nunca fazemos sozinhos, estamos sempre integrados numa equipa.
O que está a pensar fazer agora?
Os meus projetos pessoais são muito imediatos. Tenho um livro para acabar que estou a escrever com o Mário Carneiro e queria ver se pegava no doutoramento que foi interrompido há dois anos ou três e queria acabá-lo.
Aceitaria um novo desafio?
Conforme o desafio, mas sempre me guiei por desafios.