Em 1975, Nicolau Breyner lançou um famoso programa televisivo, Nicolau no País das Maravilhas, que incluía uma rábula política que se tornou muito popular, interpretada pelo próprio Nicolau e por Herman José.
A rábula, que dava pelo nome de Senhor Feliz, Senhor Contente, era cantada a duas vozes e começava sempre assim:
Como passa, Senhor Contente?
Como está, Senhor Feliz?
Diga à gente, diga à gente
Como vai este país.
A seguir, ambos iam comentando, sempre em verso, a atualidade política.
Ora, esta rábula não podia estar mais adequada aos tempos atuais.
Marcelo Rebelo de Sousa faz de Senhor Feliz, António Costa faz de Senhor Contente.
Marcelo projeta uma imagem de felicidade: vai a todas, fala sobre tudo e parece sempre bem-disposto.
Quanto a Costa, mesmo nos momentos mais difíceis ostenta um sorriso.
Nunca o vemos sério, nem preocupado, nem angustiado.
Sorri sempre.
Com um sorriso enigmático – mas, ainda assim, um sorriso.
O senhor Feliz e o Senhor Contente falam diariamente na TV.
Tal como Nicolau e Herman, parecem desafiar-se um ao outro: «Diga à gente como vai este país».
E estão quase sempre em sintonia.
Se a UE nos ameaça com sanções, António Costa diz que as sanções seriam uma «estupidez» – e Marcelo repete que seriam mesmo «uma estupidez».
Se António Costa diz que a execução orçamental «foi boa», Marcelo confirma que, de facto, «foi boa».
Se a economia cresce pouco, Marcelo responsabiliza os empresários, por não investirem, e desculpa o ministro da Economia.
Se há um problema na CGD, Marcelo aconselha calma para não desestabilizar o sistema financeiro, enquanto põe a mão por baixo do ministro das Finanças.
E, sobre o caso de Ponte de Sor, garante que a atuação do ministro Augusto Santos Silva não poderia ter sido melhor.
Marcelo Rebelo de Sousa parece o sacristão do Governo.
Naquilo que corre bem, sublinha as virtudes governativas; no que corre mal, desvaloriza os defeitos.
Este entendimento quase perfeito entre o Senhor Feliz e o Senhor Contente não tem nada de mal – antes pelo contrário.
Marcelo avisou na campanha eleitoral que faria tudo para preservar a estabilidade política.
E estava cheio de razão: sem estabilidade política não se constrói nada.
O problema não está aí.
O curioso é que, ainda há menos de um ano, os socialistas atacavam forte e feio Cavaco Silva por – supostamente – apoiar o Governo de Passos Coelho.
E a situação do país era muito mais delicada, pois estava a sair de um resgate externo (e, mesmo assim, Cavaco fizera várias críticas contundentes a Passos, como a da «espiral recessiva»).
Ora, perante isso, como pode agora o PS ufanar-se do apoio que recebe de Marcelo?
Não deveria, pelo menos – por questões de pudor –, não o manifestar tão abertamente?
Ou o PS rege-se pela cartilha do ‘nós e os outros’: se o PR nos apoiar a nós, é legítimo, se apoiar os nossos adversários, é inaceitável.
Entretanto, olhando para Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, temos a sensação de estar perante dois atores.
Marcelo não diz o que pensa – mas o que acha que deve dizer em cada momento.
Sempre foi assim.
E nas suas análises políticas, começava por fazer grandes elogios para depois dar a estocada mortal.
Quanto a António Costa, não lhe fica atrás nesta matéria.
O seu sorriso trocista é um disfarce para esconder o que lhe vai na cabeça.
Mas o que pensam hoje, verdadeiramente, António Costa e Marcelo?
Neste primeiro mandato, Marcelo Rebelo de Sousa vai tentar não arranjar inimigos entre os socialistas.
Tendo ganho as eleições com os votos de muita gente do PS, não os quer perder até à reeleição – pela simples razão de que não quer ser reeleito com menos votos do que teve na primeira votação para Belém.
Isto, para ele, é um ponto de honra.
Assim, a não ser que a situação financeira se deteriore muito, vai continuar a pôr a mão por baixo do Governo.
Quanto a Costa, sabe que ter Marcelo a seu lado é um poderoso trunfo – pois, além de Marcelo ser muito popular, o seu apoio ao Governo é uma espinha entalada na garganta da direita.
Acresce que o facto de um Governo sustentado pela esquerda e pela extrema-esquerda ter o beneplácito de um Presidente de direita é importantíssimo, até para a sua credibilidade internacional.
Nestas condições, Marcelo e António Costa vão continuar a representar a rábula do Senhor Feliz e do Senhor Contente.
Cada um dirá diariamente ao outro: «Diga à gente, diga à gente, como vai este país».
Costa dirá que sim, que «vai bem» – e Marcelo confirmará: «Vai mesmo bem».
E os dois farão tudo para que a rábula se prolongue o mais tempo possível.