Tudo o que se escreva sobre o Brasil estará necessariamente errado, porque haverá sempre qualquer coisa que não se consegue dizer, qualquer coisa que se desconhece, qualquer coisa de intermédio ou de extremo que nos escapa. Um olhar, por muito conhecedor que seja, é sempre apenas um olhar – contemple ele o imenso Brasil ou o pequeno Liechtenstein.
Trabalhei nas redações dos jornais no tempo arcaico em que esta evidência estabelecia o alicerce ético de uma profissão que era, antes de mais e acima de tudo, um exercício rigoroso de compaixão, no sentido etimológico da palavra: partilha da paixão alheia.
«Cada voz está só e é única e é contra o coração dos outros, vertiginosamente, que ela ressoa». Esta frase de um romance muito antigo de Agustina Bessa-Luís acompanha tudo o que digo. O coração dos outros é a metade de um címbalo que o nosso completa; o tempo e o lugar são as mãos que o tocam; a música nunca é a mesma e nunca é sentida do mesmo modo por cada uma das partes do címbalo; o intervalo entre cada prato do címbalo é feito de silêncio e solidão. Se assim é na harmonia, maior e mais irregular será esse intervalo na dissonância.
Nos países em que a injustiça social é muito acentuada, o discurso da sensatez e do meio-termo – criação burguesa e democrática – torna-se apenas um contributo injusto. O Brasil conseguiu o singular feito de se tornar uma potência económica e turística sem atingir os níveis mínimos de justiça social. Tentou, nas últimas décadas – primeiro sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso e depois de Lula da Silva –, corrigir o seu assombroso fosso social.
No início deste século comecei a visitar regularmente o Brasil. A gestação e progressão das classes médias era, a cada nova visita, imediatamente percetível. Os muito ricos começaram por se queixar dos novos custos e exigências dos seus empregados, mas foram-se calando, pelo menos diante dos europeus, talvez por vergonha: entendiam finalmente que o conceito ocidental de empregada doméstica não é o de semiescrava, que enfermeiras são profissionais hospitalares especializadas que não deviam precisar de dormir em casas alheias, fazendo baby-sitting para conseguirem sobreviver, e que, em suma, a riqueza de um país tem de ser socialmente repartida, até porque a desigualdade conduz à violência.
Mas o Brasil urbano não é o Brasil rural, o Brasil interior não é o Brasil litoral, a vastidão do território e os problemas específicos de cada zona não se resolvem instantaneamente.
O Brasil tinha – e tem – um problema básico de Educação, que os governos nunca atacaram com seriedade. Creio que é essa a causa essencial do atual dilaceramento do país. Educação não se resume a aprendizagem e diplomas: o baixíssimo nível intelectual e ético da esmagadora maioria dos políticos brasileiros demonstra-o. Vejo um país em que as elites são muito inferiores ao povão – em raciocínio, iniciativa, capacidade de trabalho e sentido ético. As elites dos países subjugados por ditaduras sucessivas nunca prestam: basta pensarmos na Rússia ou em Angola, para não nos determos nos casos das nações tocadas por totalitarismos de refugo, como Portugal, onde a falta de préstimo tem artes de sonsidão.
A raiva é criativa, o desespero entorpece; o Brasil não se deixa desesperar, nunca deixou. O país está rasgado por dentro: familiares e amigos cortaram relações por razões políticas, o que tem sido lamentado como miséria suplementar, num país em crise. Encaro o vendaval nas relações pessoais como um momento de esclarecimento, um separar das águas: o que nos define é aquilo que defendemos, os ideais em que acreditamos e os comportamentos que tomamos como corretos. É certo que a destituição de Dilma Rousseff, através de um processo ínvio e maquiavélico, destituiu também a energia democrática do Brasil. Se fosse brasileira, eu não teria votado em Dilma: não me identifico com a sua política assistencialista. Mas entendo que políticos eleitos só podem ser afastados através do voto – a não ser que se prove terem sido corruptos, o que não foi o caso. Ironia suplementar: o Presidente que a substitui está, esse sim, indiciado pela Justiça e impedido de ir a votos.
Temer já anunciou que não tolerará ser tratado por «golpista» – mas um golpe é um golpe, qualquer que seja o nome pelo qual o batizem.
Escreveu Eduardo Lourenço, nos idos de 1954: «Em definitivo só os brasileiros sabem e podem fazer o que lhes convém fazer. É como semibrasileiros que alguns portugueses se atrevem a meditar com paixão sobre uma realidade cultural cujo sucesso ou fracasso jamais os pode deixar indiferentes. Uma comunidade linguística não é um casaco que possa esquecer-se em qualquer canto, é uma pele comum queimada aqui e ali por sóis diferentes». (in Do Brasil, Fascínio e Miragem, ed. Gradiva).
Como semiportuguesa, sei que o discurso da imolação do povo e do ‘estado de exceção’ nunca dá nada de bom.