No ano passado o fisco arrecadou 41 milhões de euros com multas relativas ao não pagamento do Imposto Único de Circulação (IUC). Uma cobrança que alguns juristas e funcionários da administração fiscal consideram ser ilegal ou, pelo menos, de legalidade duvidosa.
O problema das coimas cobradas a quem não paga o IUC começa desde logo nas palavras: O IUC paga-se ou entrega-se? É que se se tratar de um pagamento do cidadão às Finanças não deveria ser cobrada qualquer coima no caso de um atraso; se se tratar de uma entrega de imposto pode ser aplicada a respetiva multa, caso se falhe o prazo limite de entrega.
Segundo juristas contactados pelo SOL, ainda que para a lei seja a «entrega do IUC», em causa está um pagamento do contribuinte à administração fiscal – uma vez que o que se entende por entrega é a transferência de valores de impostos retidos a outras pessoas, como acontece com as entidades patronais que retêm o IRS na fonte e depois o entregam ao Estado.
Manuel Faustino, jurista que ocupou diversos cargos durante os 20 anos em que esteve na Direção-Geral dos Impostos e nos 12 ao serviço do Banco de Portugal, não tem dúvidas: «Os nossos impostos pagamos, não entregamos. Entrega-se os que são de outrem; o IUC é como o IRS ou o IMI, o IMI é o exemplo mais próximo».
O jurista conclui por isso que o não pagamento não deveria dar lugar a qualquer tipo de coima. «As coimas por falta de pagamento são próprias dos impostos indiretos e hoje o IUC é um imposto direto, um imposto direto que se repete anualmente em todos os seus elementos e é devido naquela altura» – disse, explicando sempre «que se mostre não pago deve-se extrair uma certidão de dívida e mandar o caso para execução».
E, tal como acontece no Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), diz, «o elemento coercivo para o contribuinte são os juros de mora». «Esse é que é o elemento de penalização», reforça.
41 milhões só num ano
Dos 907 milhões de euros arrecadados no ano passado com coimas, o Ministério das Finanças revelou ao SOL que 41.023.565 euros foram referentes a coimas por atraso no pagamento do Imposto Único de Circulação.
Confrontado com uma possível cobrança indevida, o gabinete do ministério tutelado por Mário Centeno disse apenas que «a fundamentação legal encontra-se consagrada no Código do IUC, aprovado em 2007 pela Assembleia da República, que prevê no seu artigo 21.° que a falta de entrega, total ou parcial, do imposto único de circulação que seja devido nos termos do Código, quando não consubstancie crime, é punível nos termos previstos pelo artigo 114.º do Regime Geral das Infrações Tributárias».
A evolução do IUC
Para entender o porquê de hoje o IUC ser um imposto diferente dos outros é preciso recuar até 2005, altura em que tinha o nome de Imposto Municipal sobre Veículos (IMV) e em que só era obrigatório pagar caso os carros ou motas circulassem, ou seja, não era um imposto de propriedade mas de circulação. Por esse motivo, não cabia à administração fiscal enviar avisos de pagamento ao proprietário, que só pagava se quisesse circular.
Vários juristas e funcionários das Finanças, que pediram para não ser identificados, explicam que o ‘meio termo’ em que está hoje o IUC resulta de uma transição mal conseguida de imposto indireto para imposto direto. Manuel Faustino também concorda com essa leitura e diz mesmo que era importante um pronunciamento do Tribunal Constitucional sobre a matéria.
«Em 2005 o IUC foi modificado e embora tenha continuado com esta característica de ter de ser o contribuinte a pedir o seu pagamento, houve uma alteração fundamental: primeiro passou a incluir uma parte do imposto especial sobre veículos e depois passou a ser um imposto devido pela propriedade do veículo. Quer se ande ou não com o carro o imposto é devido. E sendo um imposto direto competia ao Estado cobrá-lo, ou seja, mandar por correio para o contribuinte pagar, como acontece com o IMI», refere.
E diz que caso alguém avance para tribunal pode conseguir que o caso seja analisado superiormente: «Estou convencido de que isso obrigaria a um pronunciamento do Tribunal Constitucional sobre a matéria, o que era importante para se clarificarem as águas. Isto são, aliás, questões que o MPdeveria suscitar e não suscita».
Mas esta é um tema que tem preocupado também vários funcionários do fisco, que consideram que o termo «entrega do IUC» foi usado pelo legislador em 2007 para conseguir assim «arrecadar mais algum dinheiro com coimas». Alguns dos que aceitaram falar com o SOL, sob anonimato, lembram mesmo que no final do século XIX uma das maiores conquistas civilizacionais foi, além da abolição da pena de morte, a abolição da sanção por dívidas, referindo que isso não impede que seja aberto um processo executivo com as respetivas penhoras, vendas e exigência de juros de mora. «É isso que diz o artigo 1.º do protocolo adicional n.º 4 da Convenção para a proteção dos Direitos do Homem», justificam, concluindo que «as coimas aplicadas aos proprietários de veículos que se atrasaram no pagamento do IUC estão a ser cobradas indevidamente».
Outra análise do caso
O fiscalista Rogério Ferreira concorda que «a liquidação de IUC está a cargo do contribuinte, que deve liquidar o imposto e, obviamente, proceder ao seu pagamento». Isto apesar de «a lei [falar] em ‘entrega da prestação tributária’». Contudo, o advogado entende que ‘discussão semântica’ não afasta «a relativa clareza do texto quando se comina a ‘falta de entrega’ (artigo 21.º do Código do IUC) com a instauração de procedimento contra-ordenacional, que tem como possível consequência a aplicação de coimas».