1.Na última sexta-feira, lançámos um desafio ao leitor: reflectir, no fim de semana, acerca da justificação que motivou a União Europeia a lançar uma “guerra comercial” contra as empresas baluartes do capitalismo norte-americano (e, logo, mundial) nesta conjuntura. Evocamos, mais uma vez, que a decisão da União Europeia foi divulgada dias depois de o vice-chanceler alemão e o Presidente francês declarem a morte do TTIP – o acordo entre a UE e os EUA que visa a liberalização das trocas comerciais entre estes dois blocos político-económicos.
2. Naturalmente, o momento escolhido para a tomada de posição das duas potências liderantes da UE sobre o TTIP e a decisão contra a Apple não foi um mero acaso: resulta, antes, de uma opção política deliberada, consciente e estratégica. Já percebemos que o Presidente François Hollande não age; só reage às opções do Governo de Angela Merkel, colando-se sistematicamente às posições alemãs. Após a decisão que condena a Apple ao pagamento de impostos alegadamente devidos, a UE está prestes a divulgar decisões condenatórias contra a Amazon e a Starbucks.
2.1. Qual é o padrão de actuação das instâncias europeias? Condenar empresas de origem norte-americana. Alguém acredita que só as empresas americanas é que celebram acordos com governos nacionais europeus – acordos válidos à luz da legislaç ão nacional aplicável – e empresas de nacionalidade diversa não o fazem? As empresas alemãs, francesas portam-se sempre muito bem – as empresas norte-americanas sempre muito mal! Isto não passa obviamente de um conto de fadas. Conto de fadas que interessa (e muito!) às potências dominantes europeias – em prejuízo do seu concorrente norte-americana e dos restantes estados membros da União Europeia.
3. Dito isto, percebe-se a intencionalidade política subjacente à condenação da Apple e de outras empresas norte-americanas. Em primeiro lugar, desta forma, a União Europeia – obedecendo a ditames dos governos alemão e francês – inviabiliza a aprovação do TTIP já negociado e que o Presidente Barack Obama pretendia fazer entrar em vigor antes do término do seu segundo mandato na Casa Branca.
3.1. Angela Merkel e François Hollande temeram que a inscrição do TTIP no legado da Administração Obama ficasse na História como uma vitória dos EUA sobre os respectivos países. Ao assumirem declarações agressivas contra o TTIP, e instando a Comissão Europeia a aplicar sanções contra as empresas-símbolo dos EUA, Angela Merkel e François Hollande querem ganhar peso negocial (“leverage”) na fixação dos termos exactos do Acordo Transatlântico de Comércio, refazendo-o mais à medida dos “interesses europeus”.
3.2. Ou seja: Angela Merkel e Hollande querem que o TTIP seja o acordo de comércio europeu, a que os EUA se juntam – e não o acordo dos EUA a que a UE (leia-se, a Alemanha e a França) se juntam. Afinal, não obstante os discursos inflamados dos “eurofanáticos”, os países europeus não negam a sua identidade nacional própria – muito menos esquecem os seus mitos, os seus receios, os seus traumas históricos. Já agora, as suas aspirações históricas ancestrais também não são olvidadas.
4. Por outro lado, a Alemanha está a apostar tudo na vitória de Donald Trump no dia 8 de Novembro. Porquê? Porque, caso Donald Trump cumpra as suas promessas eleitorais (o que seriamente duvidamos), os EUA vão mudar completamente a sua política externa, designadamente na vertente comercial. De país promotor do capitalismo global, da liberalização dos mercados, da meritocracia, da ascensão social – os EUA passarão a ser o principal adversário do comércio livre internacional, adoptando teses proteccionistas que só têm paralelo no período que se seguiu ao “New Deal” e que antecedeu a participação dos EUA na Segunda Guerra Mundial.
4.1. Como a política – com especial acuidade, a ordem internacional – tem horror ao vazio, a este retraimento dos EUA seguir-se-á a afirmação internacional da Alemanha. A Alemanha poderá, então, surgir como a potência comercial mundial; o que lhe dará, claro está, maior protagonismo geopolítico. Na cabeça dos políticos alemães, a força do seu país é inversamente proporcional à influência e poder dos EUA: quanto maior for o protagonismo dos EUA, menor será o protagonismo da Alemanha; quanto menor for o protagonismo dos EUA, maior será o protagonismo da Alemanha.
4.2. Ora, neste sentido, qual seria a vantagem de aprovar o TTIP num momento em que se estão a disputar, nos EUA, as eleições presidenciais, cujo vencedor poderá ser um candidato anti-globalização e altamente proteccionista? Para Angela Merkel e seu Governo, a eleição de Donald Trump (e a sua impreparação em matéria de política externa) poderá ser uma oportunidade historicamente irrepetível de ganhar peso internacional à custa dos EUA.
E, para tal, é vital que a Alemanha assegure o domínio comercial do espaço europeu, utilizando o Direito a seu favor; diversifique as suas relações diplomáticas comerciais, dando ênfase às relações com outras potências internacionais concorrentes dos EUA (China e Rússia); aposte em sectores da economia ligadas à inovação e às novas tecnologias, desenvolvendo políticas de desenvolvimento e atracção de starts-ups neste sentido (também por este factor a decisão de Bruxelas contra a Apple se enquadra plenamente na estratégia de Berlim…). Não por acaso estes têm sido os eixos essenciais de actuação política externa de Angela Merkel…
5. Não tenhamos ilusões: a Alemanha aposta forte na exploração das tensões internas políticas dos EUA para enfraquecer a nação americana no concerto das nações. Se fenómenos como o “Brexit” se repetirem brevemente, não se queixem: colocar a União Europeia ao serviço de um país, exercendo poderes próprios de realidades políticas federais, só poderá dar mau resultado. Já se viu que Merkel e Hollande não aprendem…