Síria: Por quinze horas, ninguém morreu

Existem muitas razões para duvidar do futuro da trégua negociada entre os Estados Unidos e a Rússia. Mas, pelo menos por algumas horas, a guerra poupou os sírios.

Estes são dias que os sírios celebram com prudência. A mais recente experiência de cessar-fogo em cinco anos de guerra civil começou ao pôr-do-sol de segunda-feira e quase imediatamente se ouviram notícias de que nem os helicópteros do regime de Bashar al-Assad haviam deixado de lançar bombas sobre bairros controlados pelos rebeldes, nem estes tinham travado os disparos indiscriminados dos seus mísseis artesanais contra zonas governamentais.

Mas o burburinho, como as explosões, cessou nas primeiras horas de escuridão. E ontem, pela hora de almoço, o presidente do Observatório Sírio para os Direitos Humanos reclamava, para surpresa de alguns, que, apesar do punhado de violações de lado a lado, havia motivos para otimismo. “Ninguém morreu por disparos nas últimas 15 horas. Este é, de longe, o cessar-fogo mais bem-sucedido no país”, dizia Rami Abdulrahman.

Muitos duvidam que continue assim. O cessar-fogo negociado entre os Estados Unidos e a Rússia quer que rebeldes moderados se desliguem de outros grupos extremistas e que os aviões de Damasco e Moscovo poupem as zonas que têm bombardeado com pouco descanso e onde já quase não restam hospitais. Se a trégua se aguentar esta semana, Estados Unidos e Rússia vão tentar coordenar esforços contra grupos considerados terroristas pelas grandes potências.

Abrindo-se uma janela de paz, os camiões de assistência humanitária que tentam chegar a algumas zonas cercadas podem enfim fazê-lo. O caso mais crítico é a zona leste de Alepo, hoje em dia o centro estratégico da guerra civil e, por isso mesmo, a cidade mais violenta. Vivem cerca de 275 mil pessoas nos bairros rebeldes, quase sem acesso a cuidados médicos, alimentos e combustível. A trégua pode ser-lhes vital. Pelo menos em teoria.

No terreno, porém, as coisas complicam-se. O cessar-fogo foi negociado entre atores estrangeiros com interesses próprios e perspetivas diferentes sobre a guerra. A Rússia tem de se assegurar de que Assad não bombardeia zonas de rebeldes mais moderados, como não fez na última tentativa de cessar-fogo, que aproveitou para redobrar os ataques e conquistar terreno que acabou por lhe permitir cercar Alepo.

Responsáveis norte-americanos falam da trégua falhada de fevereiro como um exemplo entre muitos para desconfiarem da Rússia e de Assad. Mas também os Estados Unidos têm uma tarefa difícil pela frente. Cabe-lhes assegurar que grupos moderados abandonem alianças com fações como a Frente al-Nusra, o satélite sírio da Al-Qaeda, que recentemente mudou de nome para cortar com a organização-mãe – jogada em que quase ninguém acredita. Mas para muitos grupos, esta não é uma decisão fácil.

Todos estão em guerra com o Estado Islâmico, mas isso não acontece com a Frente al-Nusra e outras organizações que podem em breve ser alvo de ataques de russos e americanos. Estes grupos estão mais bem treinados do que as fações moderadas e estas precisam da sua proteção em embates contra forças do regime. Se os grupos armados sírios acolheram a trégua desta semana, fizeram-no de uma forma não oficial, por não quererem alienar o apoio do satélite da Al-Qaeda no futuro.

Mesmo que a trégua se aguente nos próximos dias, a assistência humanitária chegue às zonas cercadas (ver texto ao lado) e os Estados Unidos ultrapassem os últimos dois anos de hostilidade aberta com a Rússia para realizarem operações a dois, pouco se alterará nas perspetivas de acabar o conflito. A oposição no exílio e os seus (muitos) patrocinadores estrangeiros não têm poder para forçar a saída de Assad que, em todo o caso, consideram inevitável. A Rússia e o Irão, por seu lado, não vêm alternativas ao atual presidente.

Os sírios, apesar de tudo, aproveitam para recuperar o fôlego. No primeiro dia da trégua começou também um Eid al–Adha carregado de simbolismo. Festeja-se a vontade de Abraão de sacrificar Isaac, “a morte dos novos nas guerras dos seus anciãos”, como escreve Anne Banard no “New York_Times”. Mas festejou-se também uma noite sem bombas. Nas palavras de Hassaan Abu Nuh à AFP: “Costumávamos passar a noite acordados com os aviões mas, graças a Deus, ontem conseguimos dormir.”