Cerveja & Mistério: o leitor contra Nero Wolfe

Ao quinto livro, a Vampiro reabilita o mais peculiar dos seus detectives, mas esta nova vida da colecção continua a parecer tão velha.

Se olharmos para os cincos livros que a Porto Editora, através da sua chancela Livros do Brasil, reeditou no catálogo da ressuscitada Colecção Vampiro, duas conclusões são óbvias.

A primeira é que a Porto Editora não entende o catálogo que tem em mãos. Com uma colecção vastíssima (superou largamente o meio milhar de edições) e com uma roupagem gráfica emblemática, a Vampiro dispunha (e dispõe ainda, só a Porto Editora parece não o perceber) de dois trunfos notáveis e imediatamente reconhecíveis, o nome e o formato.  Manter o formato teria sido um gesto de saudável conservadorismo por parte da editora a qual, contudo, preferiu aproximá-lo mais do A5 e quebrar a continuidade com o passado, procurando talvez adaptar-se à procura de um mercado com cada vez menos coleccionadores e cada vez mais compositores de estantes. E por falar em continuidade, como se mantém a continuidade de um catálogo gigantesco, cristalizado há décadas e composto numa época com gostos e tendências diferentes? Não havendo uma resposta evidente, há certamente hipóteses concebíveis e uma delas passava por revisitar o catálogo, olhar para o muito que ainda está disponível desse elenco – os Vampiros são uma espécie nada rara nas vendas de livros por atacado e nas feiras de alfarrabistas –, procurar resolver alguns dos problemas da colecção, principalmente algumas das traduções, e, mais que tudo, dar-lhe uma nova vida, ligando passado e presente e trazendo para a colecção novos autores. Ao invés, a Porto Editora preferiu olhar para este catálogo como se fosse um monumento antigo, apenas útil para exposição, mas nunca para reaproveitamento. Dos cinco livros até agora reeditados, julgo que não será exagerado dizer que todos estavam disponíveis ao leitor português e ainda que estivessem esgotados na editora, no mercado certamente não estavam, a não ser que por mercado entendamos apenas as Fnacs e Bertrands.

A segunda conclusão é que o ressuscitar da Vampiro tem sido conduzido em função dos seus grandes detectives. Agora, para juntarmos a Ellery Queen, Philo Vance, Philip Marlowe e Sam Spade, temos Nero Wolfe, um detective que nos seus melhores momentos recorda o que Sherlock Holmes disse a propósito do seu irmão Mycroft: “se a arte do detetive começasse e terminasse no raciocínio a partir de uma poltrona, o meu irmão seria o maior investigador que já viveu”.

Picada Mortal é a versão portuguesa de Fer-de-Lance (havia já duas traduções deste livro, uma de 1963 por Fernanda Pinto Rodrigues, e outra de 1990 por Eduardo Saló, que é agora reproduzida), o romance em que Rex Stout estreia o seu singularíssimo detective, notável pelos seus apetites exigentes e a sua obsessão com comida e cerveja, ambas evidentes logo nas primeiras páginas desta obra. Aliás, a primeira frase que neste livro podemos ler de Nero Wolfe e a sua primeira fala de todo é, exactamente, “Onde está a cerveja?”, a propósito de um curioso pedido que Wolfe fez a Fritz, o seu cozinheiro particular, para que lhe trouxesse uma garrafa de cada uma das marcas de cerveja disponíveis no mercado, com o intuito de decidir qual a melhor à venda e assim deixar de vez as de produção clandestina.

Como se disse, Wolfe é um detective de poltrona, uma antítese do típico detective do hard-boiled, se tomarmos Marlowe como paradigma, mais parecido com um Poirot nas histórias que acompanham a sua doença, degradação física e momentos finais. Mas, menos do que a aparente inactividade do seu detective, aliás coincidente e coerente com a caracterização e os gostos com que Stout vai compondo a sua personagem, importa reparar que se trata de um truque, um detalhe aparentemente simples mas que transforma o livro numa espécie de jogo em que o leitor é um detective em condições de igualdade com Wolfe, que recebe a história e os dados por intermédio de outros e em que as palavras são a medida do tempo que temos para desvendar o mistério antes do protagonista.  

 


Título: Picada Mortal
Autor: Rex Stout
Pág.: 296
Preço: 7,70€

A Livros do Brasil publica, a 8 de setembro, Picada Mortal, de Rex Stout, o quinto título da renovada coleção Vampiro. Narrando o primeiro caso da longa carreira detetivesca da dupla Wolfe e Goodwin, Picada Mortal foi lançado em 1934 com um êxito estrondoso e afirmou desde logo Rex Stout como um dos nomes mais originais do romance policial americano, permanecendo ainda hoje como obra de referência na história da literatura de mistério. Neste livro, tudo começa com um desaparecimento e a principal pista parece estar num recorte de jornal. Barstow, de cinquenta e oito anos, reitor da Holland University, jogava golfe domingo à tarde no campo do Green Meadow Club e de súbito caiu morto, vítima de ataque cardíaco: terá sido esta a notícia que Carlo Maffei guardou do jornal do dia em que foi visto pela última vez. O detetive privado Nero Wolfe é contratado para o encontrar, mas não tarda muito até que seja a polícia a descobri-lo – morto, apunhalado. E quando Wolfe é presenteado no seu escritório com uma das mais temidas víboras conhecidas pelo homem, a fer-de-lance, o seu jovem assistente Archie Goodwin percebe que estão perto de desvendar dois crimes diabolicamente inteligentes.

Sobre o autor: Rex Stout nasceu a 1 de dezembro de 1886 na cidade americana de Noblesville, Indiana. Após uma breve passagem pela Universidade do Kansas, alista-se na Marinha em 1906 e durante dois anos serve a bordo do iate Mayflower, do Presidente Roosevelt, como subtenente. Em 1916 cria um sistema bancário escolar que seria implementado em mais de quatrocentos estabelecimentos de ensino e que lhe garantiu lucros confortáveis, mas em 1927 abandona os negócios e passa a dedicar-se inteiramente à escrita. Publica três romances, que obtiveram críticas favoráveis, mas é com a sua primeira obra policial que alcança o reconhecimento do grande público:Picada Mortal surgiu em 1934 e com ela surgiu a personagem de Nero Wolfe, detetive excêntrico, amante de boa comida e de belas orquídeas, que, juntamente com o jovem assistente Archie Goodwin, viria a protagonizar dezenas de histórias. Em 1959, Rex Stout recebeu a distinção de Grande Mestre pela Mystery Writers of America. Morreu a 27 de outubro de 1975, em Danbury, no Connecticut, cerca de um mês após a publicação do seu último romance, Um Caso Familiar.

Já na coleção Vampiro: 
N.º 1: Os Crimes do Bispo, de S.S. Van Dine 
N.º 2: Vivenda Calamidade, de Ellery Queen 
N.º 3: O Falcão de Malta, de Dashiell Hammett 
N.º 4: O Imenso Adeus, de Raymond Chandler