ZULULUZU. E se a caixa preta fosse branca?

Isto é um ataque. Do Teatro Praga ao teatro e à caixa preta, “puta normativa”, dispositivo racista, “objeto tecnológico para brancos”. E isto é tudo verdade, caso contrário este não seria um espetáculo sobre África e Fernando Pessoa em África com oito atores, em que só um é preto. Dito assim, que é esse o…

ZULULUZU é neologismo (zulu, grupo étnico sul-africano a que pertencem 10 a 11 milhões de pessoas, o que corresponde à quantidade de gente que há neste território luso, que faz o luzu) para enquadrar a passagem de Fernando Pessoa pela África do Sul. ZULULUZU, zulu mais luzu, estão apresentados os “clichés culturais” de que se serve o Teatro Praga para este ataque à instituição teatral que é a caixa preta. “Racista, objeto tecnológico para brancos, puta”, sem ser uma puta qualquer, que isso não tem que ser insulto, é uma puta, mas uma “puta normativa”.

E porque aqui também havemos de ver um ovo, além de Pessoa, e de Portugal e o que somos, e da África do Sul, o que veio primeiro? “O Pedro [Penim, que com André E. Teodósio e José Maria Vieira Mendes é autor e encenador do espetáculo que tem esta noite estreia nacional no São Luiz] costuma fazer um jogo muito divertido que é pensar que espetáculos é que nós [Teatro Praga] não faríamos”, começa por explicar André E. Teodósio, que aqui há de ser ainda um super-Camões e Pessoa ao mesmo tempo, entre várias outras coisas, como comer batatas fritas. “E, primeiro, nunca fazemos espetáculos sobre, e depois nunca faríamos um espetáculo a partir da vida de Fernando Pessoa. Ele parte deste mecanismo sempre, para nós também percebermos onde é que estamos presos, como uma espécie de gramática preconceituosa.”

Veio daí a epifania, tinham que fazer um espetáculo sobre Fernando Pessoa. “Não sabíamos o quê, mas queríamos lutar contra esse preconceito, essa caixa preta que nós próprios teríamos.” Depois, numa viagem à África do Sul, André E. Teodósio descobriu uma estátua do poeta e achou que deviam pensar sobre isso. Afinal não foi bem uma passagem a relação de Pessoa com África, foram dez anos, dos 7 aos 17, até regressar a Lisboa. “Começámos a perceber que [isto] não era evidente porque os teóricos acham que não há nada da África do Sul que tenha marcado Fernando Pessoa e a perceber que há uma ideia de África, uma ideia de África do Sul, e que o que eles queriam encontrar no Fernando Pessoa era leões, pretinhos, fome, selva, tubarões… Como isso não existe na literatura dele, não é África.” Estava aqui o princípio de ZULULUZU, que é tudo menos uma ilustração desse período ou do que é ou foi esse país. “Queres a África do Fernando Pessoa? Qual África?” Já dizia Pessoa, “o que vemos não é o que vemos, senão o que somos”. O que faz ZULULUZU é tentar “perceber como é que todas estas categorias estão cristalizadas, seja em universidades ou no imaginário coletivo, fechadas numa espécie de caixa preta que é uma ditadura”.

E com isto chegamos ao teatro, a esta caixa preta em que estamos, concebida com o problema original de ser preta. “Aquele preto é feito para o meu corpo branco se destacar, não é feito para um corpo não branco se destacar. Dizemos sempre preto e branco. O negro, na verdade, é uma coisa muito mais do inglês do que do português.”

Preto, preto, preto, branco, preto, branco, preto, branco, “porque o meu bisavô era preto”. Jenny Larrue também é preta e é por isso que só lhe vemos os sapatos dourados no início do espetáculo. “Porque o meu bisavô era preto”, outra vez, porque houve aquele tempo em que os pretos eram representados por brancos que pintavam a cara de preto para que se percebesse que eram pretos, e agora, 2016, São Luiz, assistimos a um espetáculo sobre África “com oito atores, em que só um deles é preto”.

MAS, E PESSOA? “Queres o Fernando? Eu dou-te a Fernanda, a Preta Fernanda.” Preta Fernanda, nascida Andresa do Nascimento em Cabo Verde, maio de 1859, foi a única mulher, que não era só mulher, era mulher e era preta, a assistir até ao fim ao “Manifesto Futurista”, neste mesmo São Luiz, em que estava também o próprio Pessoa. “O_meu nome é Preta Fernanda. Agora, isto, não sou eu. Isto é um gajo a fazer de uma gaja a fazer de um gajo a fazer de uma gaja […] Eu sei, caixa preta, querias que eu fosse uma coisa só, não era? De preferência uma coisa que fosse do teu agrado. LOL. Temos pena.”

Mas, e Pessoa, a pergunta regressa, a inquietação aumenta – já agora, qual Pessoa, e o que era Pessoa também? “O fascista ou ou antifascista, o pró ou contra a monarquia, o amante de Portugal ou o que o odiava, o racista ou o antirracista, qual deles?”, questiona a memória descritiva de uma conversa pós-espetáculo em Istambul, onde, antes de chegar a Lisboa, ZULULUZU teve a sua estreia internacional. “No fundo, o Pessoa também não era o Pessoa”, diz André E. Teodósio. “Era, como nós dizemos no espetáculo, com uma frase do Richard Zenith, muitas qualidades sem homem. Não tem pessoa, não é? São muitas qualidades sem pessoa.”

E como “Deus Queer, a bicha sonha, o show nasce”, Pessoa pode ser esta Ninfa Negra, um dos seus 72 heterónimos, que será o mesmo que dizer perfis falsos de Facebook, protagonizada por Jenny Larrue, com André E. Teodósio que vem do chão como um super-Camôes, que são Pessoa os dois num só, Pessoa em dois suportes, duas maneiras de fazer teatro, numa mistura de voz-off que, resume Teodósio, “é uma confusão”. Tudo a partir do “teatro estático” de Pessoa, em que não há ação, apenas uma reconstrução. “Ai, meu Deus, o que é que eles estão a fazer ao Pessoa? Que mau gosto.”

Feitas as contas, isto do que foi Pessoa na África do Sul dá apenas uns minutos num espetáculo de uma hora e quinze. “Ainda que seja curto, é o mais justo com a ideia de um cliché daquilo que é pensar o Fernando Pessoa”, justifica o encenador. “Mas que também irrita muito os leitores, porque para eles o teatro estático tem que ser sempre uma coisa dentro da lógica académica, não pode ser um show como aquele que apresentamos.” E afinal Pessoa era só um pretexto para questionamento, do princípio ao fim, em forma de insulto, à caixa preta, essa “puta normativa”, esse “objeto tecnológico para brancos”. Porque Jenny Larrue não se via porque era preta. E ZULULUZU é isso.