Vinte anos são muitos anos, sobretudo se forem os 20 anos em que tudo aconteceu em termos de conquistas da luta LGBT. Depois vem o dia em que acontece Orlando, em que 50 mortos nos fazem perceber que afinal nada disso está garantido. E aqueles em que descobrimos filmes como “Bolesno”, chocante documentário de Hrvoje Mabića lembrar que às vezes tudo muda para que tudo fique na mesma. O Queer Lisboa começa hoje com o filme da série “Absolutely Fabulous” e um espetáculo de homenagem às vítimas de Orlando e termina dia 24, com a estreia nacional do filme que dá um final à série “Looking”. Conversámos com João Ferreira, diretor do festival há mais de dez anos. Sobre cinema e sobre avanços políticos.
Vinte edições depois da primeira, o cinema queer mudou. Mas o país e o mundo também mudaram e isso é importante num festival como o Queer Lisboa.
Sim, o festival começa em 1997 e ao longo de quase 20 anos foi obviamente acompanhando e, na medida do possível, foi antecipando os grandes debates que foram surgindo em Portugal neste período: as questões ligadas ao casamento homossexual, à homoparentalidade, à adoção. Apesar de não sermos um festival politicamente militante, somos um festival que obviamente tem uma carga política. Pelo nome que carrega, pelos filmes que apresenta, pelos temas que aborda. E procurámos sempre abrir caminho para essas discussões políticas e sociais. As questões que gostam muito de designar como fraturantes mas que felizmente em Portugal não são tão fraturantes quanto isso. Percebeu-se que sempre que se deram passos em termos de legislação a sociedade aceitou muito bem.
A questão da co-adoção gerou alguma polémica, foram precisos alguns anos para que se tornasse possível.
Sim, mas a partir do momento em que as leis passam, há uma aceitação grande na nossa sociedade. E isso temos sentido muito no festival, que, fazendo a história, foi sempre um pouco isso. Nunca foi pensado para ser fechado, nunca foi feito especificamente para uma comunidade. Ele aborda um cinema que tem esta especificidade, mas desde a primeira edição que foi pensado como um festival para qualquer pessoa que goste de cinema.
E como é que isso se fazia numa altura em que tudo era tão diferente? Até por todo o significado que o termo queer carrega.
O termo queer surgiu na décima primeira edição, o Queer começou como Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa. Mudámos o nome porque deixou de fazer sentido, face à programação, ter a designação “gay e lésbico”.
Que é muito redutora.
Sim, o que mostrávamos era muito para além disso. Era trans, era bissexual, e falávamos de várias questões que até vão para lá da sexualidade. E optámos por essa mudança, que aliás foi uma tendência em vários festivais congéneres por todo o mundo. Nós tivemos o privilégio de desde o início termos sido apadrinhados pela Câmara de Lisboa, pela Cinemateca Portuguesa e pelo ICAM, o antigo ICA, e então o festival nasceu com uma grande credibilidade. Estamos a falar de 1997, de uma altura em que não havia festivais de cinema em Lisboa. Passávamos François Ozon, Almodóvar, uma série de realizadores com filmes que faziam o circuito dos festivais, daí termos atraído logo um público muito vasto, que ajudou desde cedo a implementar o que é o espírito do festival desde o início.
Uma 20.ª edição de um festival de cinema queer carrega um significado importante. Até porque estamos no ano de Orlando e estamos também, em Portugal, num ano que foi importante em termos de conquistas de direitos…
Especialmente nos últimos anos não gostamos de partir com um conceito específico para cada edição. O que tem acontecido de forma mais expressiva nuns anos, noutros menos, é que conforme vamos programando o festival muitas vezes começam a desenhar-se temas. E já tivemos temas como a religião…
Isso tem a ver com os filmes que vão sendo feitos em cada ano, que refletem os problemas desse tempo?
Exatamente, os filmes vão refletir o que se está a passar em Portugal, na Europa, no mundo inteiro.
Na abertura, vai haver um espetáculo em memória das vítimas de Orlando.
Foi uma proposta que nos foi feita pelo encenador André Murraças, que aceitámos logo, com o apoio da embaixada dos EUA. Faz todo o sentido invocar um massacre que atingiu especificamente a comunidade queer. Esse tal lado político existe sempre no festival.
Este ano o Queer regressa a Derek Jarman, que morreu ainda antes da primeira edição do festival, com uma homenagem. Porquê agora?
É um realizador pouco conhecido em Portugal, principalmente por uma nova geração, e que teve uma importância primordial, em termos do que fez de subversão, de tratamento da imagem, de experimentar com a película e com a narrativa. Abriu portas nos anos 1980 e 90 que influenciaram o cinema europeu até hoje. E teve uma importância enorme também para a história queer em geral, não só do cinema, porque a partir de certa altura o Jarman torna-se também muito ativista. E isso torna-se evidente nos filmes dele, principalmente com o “Imagining October” (1984), uma curta, e com “The Last of England” (1987), uma longa-metragem, que dá nome precisamente a esta retrospetiva. O contacto que fizemos com o produtor da maior parte dos filmes dele, o James Mackay, que vem a Lisboa fazer uma programação sobre os realizadores contemporâneos do Jarman, coincidiu com a recuperação de parte do arquivo do Jarman, com filmes que nunca tinham sido mostrados que estão a ser recuperados. Não é uma retrospetiva clássica, não é exaustiva, mas procura perceber aquele movimento em Inglaterra e em Londres, dos anos 70 para os anos 80.
Sobre essa questão da militância de que falava, que importância teve o cinema queer na luta LGBT?
Teve a importância que o cinema tem de uma forma geral, que é, por um lado, dar a ver realidades e confrontar o público com realidades. O cinema tem esse poder político de fazer pensar e de transformar e, por outro lado, dá aos espectadores a possibilidade de se reverem no que está no ecrã. E isso foi fundamental para a comunidade queer, para homens, mulheres, trans, que se sentiam isolados, que não tinham referências nas suas famílias, nas suas comunidades, do que era ser-se homossexual e encontraram isso no cinema.
Durante muito tempo, estas personagens surgiram de forma caricaturada no ecrã.
Mas, se olharmos para a história do cinema, há sempre realizadores e argumentistas que conseguiram passar, às vezes de forma um bocadinho enviesada, quando a censura era muito forte – estou a falar nos estúdios de Hollywood e no cinema de grande projeção mundial – estas personagens. Camufladas, mas existiam, e o espectador conseguia identificar-se com elas. E a partir dos anos 80, principalmente, surgem personagens abertamente homossexuais no ecrã. Isto surge na segunda metade de 80, muito como reação à epidemia da sida. E depois temos aquilo a que chamamos hoje new queer cinema, que vai mostrar que estas pessoas são tão boas ou tão más como todas as outras. A inclusão está aí.
Séries como “Looking”, da HBO, cujo filme encerrará o festival, têm tido justamente essa importância.
A televisão, nos últimos 15, 20 anos, foi fundamental. Séries como “Sete Palmos de Terra”, “The L Word”, mais recentemente “Looking”, e até comédias como “Absolutely Fabulous” [cujo filme abre o festival], obviamente, vêm levar estas personagens a milhões de pessoas no mundo inteiro. Na abordagem destes temas, a televisão veio abrir caminho ao cinema.
E, para o exemplo mais massificado possível, tivemos a primeira cena de sexo gay numa novela brasileira, protagonizada pelo Ricardo Pereira.
Sim. Aliás, o Brasil tem sido um barómetro interessante porque a Globo tem tido uma gestão desses temas muito curiosa.
Um dos documentários em competição, “Bolesno”, impressiona como alerta para uma realidade que não nos parece muito possível na Europa deste século.
É surpreendente e chocante, ao mesmo tempo, porque estamos a falar de agora, de uma família em que a filha faz o seu coming out como lésbica e os pais internam-na com o consentimento da diretora de um instituto psiquiátrico, na Croácia.
Para a curarem.
Sim. Isto é chocante na Europa contemporânea e mostra que, mesmo em países que julgamos avançados em termos de legislação e de mentalidade, voltamos sempre àquele problema do núcleo em que cada um de nós está – a família, os amigos, a escola – e o perigo que isso pode ser, a forma como pode destruir uma vida. Este documentário revela-nos isso de forma excecional.