Nunca em dois anos de ataques aéreos de uma coligação internacional contra alvos jihadistas na Síria houve um erro tão crasso como o que foi cometido pelos Estados Unidos neste fim de semana, ou com consequências tão graves para uma possível resolução pacífica do conflito. Aviões americanos e australianos bombardearam no sábado perto de duas centenas de soldados sírios em Deir Ezzor, no leste do país, alegadamente confundindo-os com os combatentes do Estado Islâmico que os cercam há meses.
E fizeram-no com uma eficácia letal. Morreram mais de 62 militares sírios e perto de cem ficaram feridos. Os jihadistas nas redondezas, para além disso, aproveitaram o ataque para avançar umas dezenas de metros e apertar ainda mais o cerco ao único local que, naquela zona, não faz parte do seu suposto califado. A coligação cancelou o ataque quando a Rússia fez saber que estavam a bombardear soldados sírios, com quem não está em guerra e há dois anos prometeu não atingir na luta contra os extremistas.
Não foram a tempo de evitar aquilo que se pode revelar um desastre diplomático. O passo em falso dos Estados Unidos – que é quem comanda a coligação internacional – aconteceu no final da primeira semana de um cessar-fogo negociado ao longo de vários meses com a Rússia, com quem, aliás, deveriam começar hoje a coordenar ataques contra grupos que, para além do Estado Islâmico, entendam ser comandados por radicais islâmicos. A Rússia convocou imediatamente uma reunião do Conselho de Segurança da ONU para protestar contra o ataque e ficou a pouco de dizer que a cooperação entre os dois países seria cancelada.
O que aconteceu à margem dessa reunião revela muito sobre a falta de confiança entre americanos e russos, dois países fundamentais para se chegar a um entendimento político sobre a Síria e para que se apliquem tréguas como a que ainda está em vigor. Em vez de entrar imediatamente na reunião do Conselho de Segurança, a embaixadora norte-americana dirigiu-se primeiro aos jornalistas para lamentar o erro americano, mas também – e sobretudo – para atacar “as manobras de distração” russas.
“Se concluirmos ter realmente atingido pessoal militar sírio, essa não era a nossa intenção e claro que lamentamos a perda de vidas”, disse Samantha Power. Encerrado esse capítulo, a embaixadora lançou o tema central do seu discurso na noite de sábado. O que a Rússia quis engendrar pedindo a reunião nas Nações Unidas, afirmou, não passava de “uma manobra de moralismo e pedantismo”. “Imaginem quantas vezes este conselho se reuniria se tivéssemos um encontro de emergência sempre que a Rússia ou a Síria bombardeassem um hospital. A Rússia nunca pede uma consulta do Conselho de Segurança sobre essas práticas”, argumentou.
Os comentários de Power fizeram com que o embaixador russo para as Nações Unidas abandonasse a reunião que ele próprio convocara para sugerir aos jornalistas fora da sala que os Estados Unidos tinham atacado tropas sírias para não terem que coordenar ataques com a Rússia – nos últimos dias, de facto, altos responsáveis americanos disseram-se preocupados com a ideia das operações conjuntas. O cessar-fogo, argumentou Vitaly Churkin, “está em maus lençóis”.
O desenrolar da trégua dá-lhe em parte razão. Com a exceção dos soldados sírios mortos no ataque americano de sábado, contaram-se poucas vítimas na última semana – pouco mais de dez civis –, mas os combates e bombardeamentos estão a regressar gradualmente a algumas partes do país. Ontem caíram também as primeiras bombas de Assad em Alepo, um gesto proibido pelo acordo de cessar-fogo e que, por si só, o pode derrubar. Churkin prometeu na noite de sábado que a ajuda humanitária chegaria hoje enfim aos bairros rebeldes de Alepo, onde, apesar dos protestos das Nações Unidas, mais de 250 mil pessoas esperam desde o início da última semana por algum alívio, vivendo com pouca ou nenhuma comida, combustível ou material médico.