A devoção desinteressada e recíproca entre as pessoas é a mais gratificante experiência da vida; a alegria da partilha, da cumplicidade, do entendimento no silêncio como na palavra, da lealdade inabalável, ajuda-nos a superar desilusões, inseguranças, medos e mágoas.
A dor de perder um amigo é muito mais forte do que a de perder um amor, porque a amizade não está sujeita às contingências do desejo carnal – leve, levíssimo, como tudo o que é puramente físico e, por isso mesmo, imprevisível, traiçoeiro.
Na época da globalização, a amizade parece ter-se tornado uma mercadoria global e ligeira, sem compromissos que excedam os ‘likes’ e a hipocrisia festiva do Facebook: há quem tenha milhões de amigos virtuais e nenhuma mão que acaricie a sua num momento de desgraça, nenhum ombro concreto sobre o qual repousar o excessivo peso do mundo.
O Facebook tornou-se uma plateia diante da qual cada um se sente uma estrela pop, encandeada pelas luzes mas na verdade sozinha no escuro do seu desespero.
O individualismo acirrado pela cultura da competição, misturado com a ideia festiva de um multiculturalismo que nos ensina a ‘tolerar’ o ‘diferente’ em vez de pensar na igualdade fundamental de todos os seres humanos, conduz-nos a uma insensibilidade crescente face ao sofrimento alheio.
A indiferença da comunicação social em relação à campanha corajosa que neste momento as mulheres sauditas desenvolvem na rede social Twitter é um sintoma muito evidente desta insensibilidade.
Na Arábia Saudita, as mulheres vivem sob o regime da ‘guarda masculina’: significa isto que não podem tomar qualquer decisão acerca da sua própria vida. Mesmo que, por exemplo, precisem de ser operadas, só podem ir para o hospital se o homem responsável por elas o autorizar.
A campanha promovida pelo movimento feminista @Endguardianship (Fim à Tutela), utilizando a hashtag #StopEnslavingSaudiWomen (Fim à Escravatura das Sauditas), tem publicado no Twitter, diariamente, dezenas de mensagens, filmes e fotografias alertando para a insustentável situação das mulheres na Arábia Saudita.
Numa das filmagens vê-se um homem atirando uma mulher coberta por uma burka da varanda do seu apartamento; a mulher grita e tenta agarrar-se ao muro da varanda, diante de uma pequena multidão de basbaques, que assistem impávidos, até que a mulher cai no asfalto. Numa outra, vê-se uma mulher de burka a ser insultada nos corredores de um centro comercial sofisticado, pelo crime de não usar luvas.
Nas mensagens, as mulheres escrevem sobre o horror de serem abusadas ou espancadas pelos seus ‘tutores’ (em alguns casos, os seus próprios filhos) e não encontrarem socorro em parte alguma. Ou escrevem simplesmente sobre o facto de serem consideradas menores, incapazes, durante a vida inteira – e de não terem direitos: estão proibidas de conduzir, só podem trabalhar com autorização dos seus ‘guardas’, nem sequer podem sair à rua sem autorização e sem a companhia dos seus ‘tutores’.
A Arábia Saudita prometeu, na ONU, abolir este sistema de ‘tutela’ em 2009, depois adiou a promessa para 2013, e agora afirma que a cumprirá em 2030… As mulheres escravizadas decidiram deixar de esperar por estes adiamentos sucessivos nos quais as suas vidas se esgotam.
Esta campanha tem sido apoiada e divulgada por organizações de Direitos Humanos e por mulheres de múltiplos países, mas não tem alcançado a atenção mediática concedida à lúbrica questão do chamado burkini.
O Ocidente alimenta a sua boa consciência e consola o seu medo perorando sobre a Liberdade, em maiúsculas, esquecendo que, como diz uma destas mulheres, «nos países islâmicos não há sequer a opção de abandonar o Islão».
As meninas e mulheres transportadas pelas suas famílias do mundo islâmico para os países ocidentais têm de facto possibilidade de escolha? As jovens forçadas pelas famílias a deixar de estudar e a casar com quem os pais decidem, em França, na Holanda ou em Inglaterra, têm de facto escolha? Vamos continuar a dizer que se trata de ‘culturas outras’ e ‘tradições a respeitar’, mantendo-nos insensíveis ao sofrimento destas pessoas?
O filósofo Antonio Cicero recordou, esta semana, no Festival Internacional de Cultura, em Cascais, que o racionalismo inaugurado por Descartes, fundamento de um modernismo ainda por cumprir, não é «etnocêntrico» porque consiste simplesmente na afirmação de que todos os seres humanos são dotados de razão e, por conseguinte, da liberdade inalienável conferida pelo ato de pensar.
O nosso cómodo egoísmo prefere ignorar esta igualdade essencial, porque nos obrigaria a combater pelos direitos básicos dos outros. Um bom princípio seria acordarmos todos os dias com esta paráfrase de Montaigne: «Porque são elas, porque sou eu». Qualquer uma de nós poderia ter nascido na Arábia Saudita. Qualquer homem poderia ter nascido mulher. Sem este exercício mental permanente, não há Humanidade.