9 de fevereiro de 1964 e aqueles miúdos de Liverpool, Paul, Ringo, George e John, subiam ao palco do Ed Sullivan, em Manhattan para o concerto que, não sabiam ainda, haveria de mudar as suas vidas. E a indústria da música e a América. É que, nessa noite, estavam 73 milhões de pessoas a assistir a esse concerto – não nesse teatro da Broadway, com capacidade para apenas 400, mas pela televisão, que nessa noite de 9 de fevereiro de 1964 bateu recordes de audiências. Paul McCartney, Ringo Starr, George Harrison e John Lennon, os Beatles que já tinham conquistado a Europa, tinham acabado de ganhar também a América. A prova, se ainda era necessária, ficaria registada na história em agosto do mesmo ano, quando os Beatles encheram o Hollywood Bowl, concerto repetido exatamente um ano depois e que foi tão memorável que em 1977 foi posto em disco.
9 de fevereiro de 1964 foi o princípio daquele que seria o maior fenómeno da indústria musical, e da cultura pop, até então – porque, depois da América, veio o resto do mundo, até Tóquio, com aquela que foi a primeira digressão de uma banda pelo mundo inteiro.
E nos anos seguintes os Beatles não pararam. Entre 1962 e 1966, ano em que decidiram abrandar para regressar ao trabalho em estúdio – decisão mais do que acertada porque foi daí que saíram os êxitos que foram ‘Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band’, ‘Strawberry Fields Forever’, ‘Penny Lane’ ou ‘All You Need is Love’ – os Beatles deram, em mil dias, mais de 815 concertos, em 90 cidades de 15 países de todas as partes do mundo. E é a esses dias que regressa Ron Howard em The Beatles: Eight Days a Week, primeiro documentário autorizado da banda, que chegou esta semana às salas portuguesas, ao mesmo tempo que no Reino Unido, numa estreia simultânea com o lançamento do disco que recupera os três míticos concertos no Hollywood Bowl, naquele mesmo ano em que a banda de Liverpool chegou à América, Live At The Hollywood Bowl, reedição do esgotado disco de 1977 produzida por Giles Martin, filho de George, o lendário produtor dos Beatles, a partir das gravações originais desses concertos: apenas três pistas, remisturadas e masterizadas no estúdio de Abbey Road, com as 13 faixas do álbum original mais quatro gravações inéditas.
Sobre a dificuldade que foi registar esses concertos, tinha de resto escrito o pai, George Martin, nas notas que acompanhavam a edição de 1977: «O caos, quase que posso dizer o pânico, que reinava nesses concertos era difícil de acreditar, a não ser que se tivesse visto», escreveu Martin, para acrescentar que apenas foi possível gravar três pistas porque «os Beatles não conseguiam sequer ouvir o que estavam a tocar, os gritos daqueles 17 mil jovens tornavam até o barulho de um avião inaudível». Mas vamos ao filme.
Uma semana tem oito dias
O princípio deste documentário remonta a 2002, quando pela primeira vez a One Voice One World fez à The Beatles’ Apple Corps Ltd. a proposta de «vasculhar o mundo das filmagens feitas pelos fãs durante as digressões dos Beatles», para a partir daí fazer um filme. Quando lhe apresentaram pela primeira vez a ideia de fazer um documentário sobre os anos de digressão dos Beatles, Howard ficou apreensivo – a confiança necessária à decisão veio com o envolvimento do produtor Nigel Sinclair, como diz no texto de apresentação desta que é a primeira longa documental autorizada sobre a banda que na década de 1960 revolucionou a indústria musical. «Eu sabia que o Nigel já tinha trabalhado noutros documentários sobre música fantásticos e que tinha uma ótima equipa, e isso deu-me algum conforto», conta o realizador, que nota ainda a «experiência [de Sinclair] a trabalhar com realizadores narrativos como Martin Scorsese e outros que fizeram documentários».
Ainda assim, não lhe parecia tarefa simples contar o que havia por contar desses anos dos Beatles com uma abordagem que não soasse repetitiva. «Quando olhei para os anos de digressão, comecei por ver aquilo como uma espécie de aventura, uma história de sobrevivência nesta incrível jornada em que eles estavam. Percebi que era essa a história que podia contar, [criar] de certa maneira um parente do Apollo 13 – Do Desastre ao Triunfo [filme de 1995 em que Howard conta a história da Apollo 13], no sentido em que os dois refletem a cultura desses tempos.» E com isso estava criado o espaço para «explorar, ao mesmo tempo, a dinâmica dos Beatles como banda – uma irmandade – mas também como indivíduos, porque definitivamente eles cresceram, evoluíram e mudaram, na medida e que foram testados como indivíduos e como grupo».
A juntar às entrevistas dos dois Beatles ainda vivos, Paul McCartney e Ringo Starr, bem como àqueles que conviveram com os quatro durante aqueles anos, como Whoopi Goldberg, Elvis Costello, o jornalista Larry Kane ou Dr. Kitty Oliver, e às gravações originais de 12 músicas completas ao vivo, Howard juntou mais de 100 horas de gravações em vídeo feitas por fãs durante os concertos, nunca antes vistas.
E The Beatles: Eight Days a Week chega-nos ainda com algumas revelações, como a posição que o grupo tomou sobre questões como a segregação racial na digressão pelo sul dos Estados Unidos naquele ano de 1964, ao recusarem-se a atuar em espaços com lugares separados para brancos e negros, obrigando salas como o Gator Bowl, na Florida, a alterar a sua política para que os Beatles pudessem tocar. Episódio que ironicamente só voltou à memória de Paul McCartney graças ao documentário de Howard: «Nós não éramos apenas uns músicos», diz. «Éramos uns tipos que olhavam para o mundo, parece-me, de forma inteligente. A ideia de tocarmos para uma audiência com negros de um lado e brancos do outro parecia-nos uma piada. Não estávamos a perceber. Uma das coisas de que gosto no filme é que ele mostra que pusemos isso no contrato. E devo dizer que fiquei muito orgulhoso disso, quando voltei a vê-lo no filme».