Esta semana, um jornalista experiente escreveu o seguinte: «O que José António Saraiva faz em Eu e os Políticos não é imoral, é bem pior do que isso: o seu livro – chamemos-lhe assim – é um triste tratado de amoralidade assinado por um homem capturado pela raiva e algemado pelo desejo cego de vingança em relação a duas pessoas que odeia: Emídio Rangel e Paulo Portas. Para consumar o crime, viola sem pudor conversas privadas que terá mantido com familiares dos seus alvos, ambos entretanto mortos. Para o disfarçar, estende a traição às fontes que durante mais de três décadas lhe confiaram segredos na convicção de que se encontravam perante um jornalista decente. Enganaram-se: quem conhece José António Saraiva sabe que ele é, há muitos anos, um alienígena solitário que habita num corpo estranho em que cérebro e umbigo se fundem, numa devassa egocêntrica que, se não fosse perigosa, era apenas ridícula. José António Saraiva é um perigo porque há quem ainda o leve a sério».
O JORNALISTA que escreveu isto foi o mesmo que, dois dias antes, me tinha enviado o seguinte email:
«Tenho de lhe dizer que foi um prazer conhecê-lo. Na verdade já o tinha entrevistado anteriormente para o programa Clube de Jornalistas, mas tinha uma co-entrevistadora (a Ana Sá Lopes) e houve muita distância. Estar a alguns centímetros de si, poder olhá-lo nos olhos e ter uma conversa dura, mas leal, consigo foi uma experiência muito boa. Leio-o há muitos anos. Não concordo sempre com o que escreve, mas não sou dos que pensam que é possível alguém manter-se no topo durante tanto tempo sem que possua algo que o diferencie. Respeito-o por isso».
É DIFÍCIL acreditar que foi a mesma pessoa que escreveu os dois textos, com dois dias de intervalo, mas é verdade. Podia argumentar-se que fez estes elogios antes de ler o livro. Mas não: esse encontro referido no email foi exatamente para falar do livro.
Este é um dos guardiões da moral, que me têm atacado como coiotes. Por ter escrito um livro de memórias onde, numa linguagem correcta e objectiva, pouco adjectivada, descrevo bastidores da política e dos seus protagonistas. Não insulto ninguém. Respeito a verdade. Ora, às verdades que escrevi respondem com insultos. A maioria não leu o livro mas tem opinião sobre ele.
MAS há mais.
Esse jornalista que acha que poucos me levam a sério pertence a uma revista que me colocou esta semana na capa, como assunto principal. Em que ficamos? A revista oferece a capa a uma pessoa que não se deve levar a sério? Foi uma capa feita a brincar com os leitores?
Nessa capa, ocupada por uma grande foto minha, o título era: A traição de Saraiva a 37 políticos. Eu também poderia considerar-me traído pela revista, a quem abri as portas de casa. Mas não é disso que quero falar.
Mandam as regras que, quando se convida uma pessoa para uma grande entrevista, e se lhe dá capa, o título seja uma frase do entrevistado. Sempre foi assim. Enquanto fui director do Expresso e do SOL, eu tinha um código até mais rigoroso: não se atacava alguém com base em declarações feitas ao nosso jornal. Era uma regra de cavalheirismo. Se alguém depositara confiança em nós para nos conceder uma entrevista, não devíamos trair essa confiança atacando-o nas nossas páginas.
Dir-se-á: a revista fez a Saraiva o que ele fez a muita gente. Sucede que isso não é, pura e simplesmente, verdade.
Há uma diferença fundamental entre um texto jornalístico e um livro de memórias. As regras são outras, os objectivos são outros, o tom é outro, a exposição é outra. Até porque, nas memórias, há um tempo (às vezes décadas) de intervalo entre os factos relatados e a sua publicação. Neste livro, revelo ‘segredos’ que guardei religiosamente durante 40, 30, 20 anos. E que publico numa circunstância completamente diferente.
As pessoas com quem falei já não estão nos mesmos lugares e a conjuntura mudou.
Acresce que um livro não é uma revista nem um jornal. Tem uma circulação restrita. É um meio recatado. A tiragem inicial foi de 1500 exemplares. E acabou por ter uma repercussão gigantesca porque os mesmos jornalistas que me acusam de revelar certos segredos os escarrapacharam nas páginas dos seus jornais, dando-lhes uma inesperada publicidade. Alguns episódios mais sensíveis, que propositadamente não usei nos materiais promocionais ou na contracapa, foram estampados com foros de escândalo.
E HÁ MAIS ainda. As revelações que fiz nestas memórias têm interesse para a história de Portugal pós-25 de Abril. No livro descrevem-se factos relevantes contados pelos próprios protagonistas. E há retratos que ajudam a penetrar na intimidade (não confundir com sexualidade) de grandes actores políticos: Eanes, Mário Soares, Cavaco Silva, Álvaro Cunhal, José Sócrates. Numa linguagem serena e despojada. Nem sempre as revelações são simpáticas para os próprios? Mas nem sempre as verdades são cómodas….
Ora o que a revista me fez a mim foi um ataque pessoal, sem qualquer interesse público, com o único objectivo de me ofender. A diferença é esta. E entre a confiança que depositei na revista, aceitando dar-lhe a entrevista, e o ataque que ela me fez, não mediaram 40 anos, nem 30, nem 20. Mediaram 3 dias.
São estes os guardiões da moral. Que não queimam Eu e os Políticos em auto de fé porque não podem. Se pudessem, fariam uma pira com livros na Praça do Rossio e pegar-lhe-iam um fogo purificador.
P.S. – Ao contrário da capa, a edição da entrevista no interior da revista é honesta, e as perguntas, embora duras, foram feitas com frontalidade e não de forma capciosa.