Julieta. Até que a dor nos separe

Almodóvar andou às voltas com o silêncio, que inesperadamente impera na sua última – a vigésima – obra. Um filme sobre a dor, a culpa e o vazio, e por isso diferente de todos os outros. E que marca o regresso do realizador espanhol ao universo feminino

Diz-se que a dor une. No último filme de Pedro Almodóvar, que vem marcar o regresso do realizador espanhol ao universo feminino, a dor só separa. O primeiro comentário de Alberto Iglesias, que há 20 anos compõe as bandas sonoras dos filmes de Almodóvar, foi que “Julieta” não precisava de música, que o seu sentido era ficar assim, despido. Almodóvar insistiu – não imaginava um filme sem música, essa “ferramenta essencial para contar a história”, que “juntamente com o argumento, estrutura a narrativa, é o seu esqueleto”. E experimentaram, mas o filme acabou por ficar com apenas uma canção, a acompanhar os créditos, a completar as últimas palavras de Julieta, personagem principal deste que o realizador disse querer que fosse um drama, “não um melodrama”.

Serve esta história para mostrar logo de início ao que vamos aqui: este não será um Almodóvar igual aos outros. “Julieta” é Almodóvar às voltas com o silêncio e, apesar de todos os diálogos, é Almodóvar no vazio. Na música, nos décors, nas cores, sobretudo nas cores, mas nada do que parece despido em “Julieta” está despido por acaso – a prova são as cores que regressam mal recuamos de 2016 a 1985, ao princípio da história desta mulher, que escolheu contar com duas atrizes: Adriana Ugarte, Julieta dos 25 aos 40 anos, e Emma Suárez, Julieta daí por diante.

“Um dos riscos que corri desde o início foi o de usar duas atrizes diferentes para o papel de Julieta”, recorda nas suas notas sobre a produção de “Julieta”, candidato espanhol ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. “Não sou a favor da ideia de usar a mesma atriz para todas as idades da mesma personagem. Não confio nos efeitos da maquilhagem para envelhecer e é quase impossível a uma mulher de 25 anos conseguir a presença de uma de 50. Não é uma questão de rugas, é algo mais profundo, o passar do tempo, por fora e por dentro.” E ainda bem que o fez, porque o momento em que Julieta deixa de ser Adriana Ugarte para passar a ser Emma Suárez é um dos melhores deste seu filme.

Processo que envolve uma toalha castanha que Almodóvar diz ter guardada há anos. Como em tudo na vida, até uma toalha castanha pode ter a sua razão para existir. “Há paisagens, músicas e objetos que desde que descubro (ou redescubro, ou compro, se forem objetos) que sinto que mais cedo ou mais tarde vão aparecer nos meus filmes. Guardo-os e espero pacientemente durante anos até que surja o filme certo para eles.” É o que acontece também com o cesto de papéis de onde Julieta resgata uma fotografia rasgada, que no mesmo texto Almodóvar diz ser o seu próprio cesto de papéis.

Madrid-nova iorque-madrid. Dizíamos que “Julieta”, que tem a importância de ser o vigésimo filme de Almodóvar (e que é por isso pretexto para a retrospetiva que o MoMA de Nova Iorque lhe dedica a partir do final de novembro), é diferente de tudo o que tinha feito até aqui. E esteve para ser ainda mais. Esteve para ser o seu primeiro filme em inglês, o filme em que trocaria Madrid por Nova Iorque – e mesmo assim ainda se sente qualquer coisa de Woody Allen naquelas cenas iniciais. É que “Julieta” tem como base “Chance”, “Soon” e “Silence”, três contos de “Runaway”, da canadiana Alice Munro. “Desde que o li que pensava em adaptar os três contos ao cinema. Os três têm em comum a protagonista [Julieta], mas não têm uma sequência. São três histórias independentes que tentei juntar, inventando o que era necessário.”

“É quase impossível a uma mulher de 25 anos conseguir a presença de uma de 50. Não é uma questão de rugas”

 

No processo, Almodóvar acabou por ter que inventar bem mais do que o que faltava para unir os três contos. Deparado com a dificuldade de fazer um filme numa língua que não é a sua, o realizador espanhol desistiu da ideia de fazer um filme em Nova Iorque sem, no entanto, largar a história, cujos direitos já tinha adquirido. Começou então a trabalhar no argumento em espanhol, fazendo estas três histórias praticamente suas, “com toda a liberdade a que escrever um argumento obriga, mesmo sendo uma adaptação”. E havia muito que adaptar, muito pouco ligará Madrid a Nova Iorque, a sociedade e os costumes espanhóis aos americanos (ou canadianos).

No final consegue um filme, que não deixando de conter as histórias de Munro, é também sobre a sua Espanha, que tem diversidade que baste para nos levar da cosmopolita Madrid, suficientemente grande para Julieta fingir que muda de cidade dentro da sua cidade, a uma vila de pescadores na Galiza, de onde vem o mar. Grande que chegue ainda para ser contado a partir de um comboio, em viagens entre a vida e a morte, e Julieta é andaluza, e a Andaluzia é suficientemente longe de Madrid para a distância a que a história obrigava.

“A Adriana Ugarte e a Emma Suárez passaram a fazer parte do meu Olimpo particular, ao lado das minhas musas”

 

Almodóvar diz que os seus filmes devem ser sempre vistos duas vezes. “Gostaria de conseguir convencer o meu irmão [Agustín Almodóvar, produtor dos seus filmes] a oferecer uma segunda sessão às pessoas que já tivessem visto o filme”, escreve, para explicar que “não se sabe nada sobre as pessoas nem se aproveita a sua companhia quando se está com elas pela primeira vez”. Também fazer um filme com as protagonistas de “Julieta” foi uma primeira vez, como acontece com todo o elenco, exceção para Rossy de Palma e Susi Sánchez. Mas uma boa primeira vez, segundo deixa perceber nas suas notas sobre o filme: “Acho que a Adriana Ugarte e a Emma Suárez passaram a fazer parte do meu Olimpo particular, ao lado de Penélope Cruz, Carmen Maura, Victoria Abril, Marisa Paredes e Cecilia Roth, as minhas musas.”