Parece que nada do que a polícia diz tem efeito sobre a população de Charlotte. A cidade viveu na quarta-feira a segunda noite de protestos violentos depois da morte de Keith Scott, um homem negro que centenas de pessoas sentem que morreu injustamente às mãos da polícia, por muito que as autoridades afirmem, como fizeram horas antes dos protestos, que foi abatido por estar armado com uma pistola e não obedecer às ordens do agente que o matou.
A segunda noite de protestos foi, de longe, a mais violenta. Na terça-feira, dia em que Scott morreu, algumas centenas de manifestantes incendiaram caixas de cartão, atiraram pedras à polícia e partiram algumas janelas. Doze agentes ficaram feridos. Mas, na noite de quarta, às pedras arremessadas contra a polícia somaram-se lojas pilhadas, barricadas em chamas, carros vandalizados – incluindo dois da polícia – e, no episódio mais violento desde que cinco agentes foram assassinados em Dallas, um manifestante foi baleado, quase morrendo.
Não se conhece a sua identidade nem a do seu atacante, mas ao fim da tarde de ontem sabia–se que o seu estado era crítico e estava vivo apenas porque máquinas lhe davam o suporte básico de vida. Foi atingido na Baixa de Charlotte, numa altura em que o protesto que, como o do dia anterior, começara de forma pacífica e terminou com violência, parecia estar fora de controlo. Um vídeo capturou-o ensanguentado no chão, rodeado de manifestantes que tentavam abrir espaço, os seus olhos fixados no vazio.
O governador da Carolina do Norte decretou o estado de emergência na noite de quarta-feira. Preparando-se ontem para mais protestos, Pat McCrory chamou a Guarda Nacional e reforços da Patrulha de Autoestradas. Circulavam ontem rumores de que se iria impor recolher obrigatório. O chefe da polícia, Kerr Putney, que é negro, como o agente que matou Scott, pediu que as ruas se acalmassem e aguardassem o fim da investigação: “Esperamos o melhor, mas preparamo-nos para o pior.”
Os protestos em Charlotte entendem-se através do mais vasto pano de fundo da violência policial nos Estados Unidos e o seu peso desproporcional na comunidade afro-americana. A morte de Keith Scott pode parecer justificada pela polícia:_a arma foi encontrada e não há indícios de que a vítima tivesse um livro na mão em vez de uma pistola, como a família de Scott afirma. Mas a desconfiança em relação a uma polícia que a população vê como demasiado disposta a usar força letal mesmo quando não parece haver ameaça faz com que as ruas sigam uma versão diferente da história, pelo menos até que as autoridades divulguem o vídeo do incidente – e o Departamento de Polícia de Charlotte recusa-se a fazê-lo até que a investigação interna se conclua.
Não é preciso recuar mais do que alguns dias para se entender a contestação em Charlotte. No início da semana, a polícia de Tulsa, no Oklahoma, revelou dois vídeos da morte de um outro homem negro, Terence Crutcher, abatido próximo do seu carro avariado, a que chegou com as mãos no ar. A agente diz que Crutcher desobedeceu às ordens e tentou alcançar algo através da janela do carro, só aí abrindo fogo. Mas o vídeo mostra que a janela estava fechada e que Crutcher, pelo menos enquanto era gravado, foi obediente. Não se encontrou qualquer arma no carro.
A ideia de que Scott, como Crutcher – ou Philando Castile e Alton Sterling, em julho –, possa ter sido abatido sem ser realmente um perigo apoderou-se de Charlotte. Principalmente da comunidade negra, ciente de que no ano passado, por exemplo, quase metade das pessoas que a polícia matou sem estarem armadas eram homens negros, apesar de serem apenas 6% da população dos EUA.
A solidariedade com Scott e a sua família foi súbita e não olha ao que diz a polícia, como explica Tom Jackson, que na quarta-feira protestava pacificamente emCharlotte sem sequer ter conhecido Scott. “É deprimente ver isto a acontecer múltiplas vezes, dia após dia”, contou.