Nessa via-sacra, Passos Coelho palmilha o caminho das pedras, crucificado por uma conspiração de contrários que se deram as mãos. Apesar de escolhido, foi derrubado na sacristia. O ex-primeiro-ministro vive esse destino e bem precisa de forte blindagem para resistir a francoatiradores do calibre de Carlos César, para quem «o fiasco da liderança do Dr. Passos Coelho no PSD é o grande acontecimento político nacional». É preciso topete.
Para não lhe ficar atrás, António Costa descobriu, numa visão miraculosa, que o aumento de alunos inscritos no ensino superior era «a morte do modelo de desenvolvimento que a direita quis impor». Um profeta.
O certo é que, desde o Pontal a Castelo de Vide, a palavra de Passos Coelho tem sido escrutinada a pente fino por parte dos patrulheiros do costume, que o querem ver fora da liderança do partido. A ofensiva não começou agora. Ainda António Costa era ‘candidato a primeiro-ministro’ – figura inventada para consumo dos media – e já se afadigava em trazer Rui Rio para o proscénio, indicando-o, com direito a bênção, como putativo sucessor de Passos Coelho.
À época, sobejaram os comentadores rendidos às excelsas virtudes do ex-autarca do Porto. Convinha. O problema é que Rio, formatado para sapato regional, fugia-lhe o pé e escorregava quando procurava ir mais longe. Mudou de vida e passou à História.
Num tempo em que se fala muito, o ‘direito ao esquecimento’ transforma-se num instrumento muito útil na gestão política. Há amnésias providenciais. Por exemplo: as esquerdas festivas içaram a bandeira da austeridade como se esta tivesse origem num capricho patológico de Passos Coelho, transferindo para a ‘nuvem’ a culpa formada de um governo socialista, que conduziu o país ao limiar do colapso.
Foi um embuste atribuir a vinda da troika – e as receitas prescritas no memorando – à ‘perversidade’ da coligação PSD-CDS. Sabe-se quem aceitou a terapêutica, em desespero de causa, assinando o termo de responsabilidade. Nunca se ouviu, contudo, uma crítica de António Costa ao desatino de Sócrates, nem o menor distanciamento. Pelo contrário, no biscate da Quadratura do Círculo, na SIC, foi invariavelmente lesto a defender a desgraça.
Em estado de negação, Costa quis reescrever a história desde a última noite eleitoral, exibindo um contorcionismo sem paralelo, para se juntar aos inimigos da véspera. Deitou fora a âncora que serviu a Mário Soares, durante décadas, para manter os equilíbrios no PS, sem nunca ceder aos cantos de sereia do PCP e acólitos. Emergiu com ele o pior da família socialista. E é nesse turbilhão de oportunismos que se funda o medo – partilhado por comunistas e bloquistas – de que Passos Coelho volte a convencer os eleitores quando tocar a votos.
À cautela, já se antecipam as autárquicas como se fossem o grande teste à liderança do PSD. E não são. Mas se as esquerdas ganharem mais câmaras, será o primeiro álibi para a legitimação desejada por Costa, para a qual trabalha desde que arredou António José Seguro das vitórias por ‘poucochinho’.
Afastado Paulo Portas, e com Assunção Cristas em modo de afirmação, Passos Coelho representa o principal estorvo à tentativa de ocupação vitalícia do aparelho do Estado pelo pessoal da nova troika. Basta consultar a folha oficial.
Compreende-se, por isso, o afã em removê-lo de cena. E, se possível, em companhia de alguns juízes e procuradores selecionados – para que certos processos mediáticos sejam arquivados em paz, consagrando-nos como a nova república das bananas.
O país já anda distraído com o futebol. E o fervor clubista turva a razão e desvaloriza a anemia no crescimento económico, o recuo das exportações, a queda do investimento, as fragilidades da banca ou o agravamento de impostos.
E não faltará mesmo quem encolha os ombros perante a suposta ingenuidade do ministro Mário Centeno ao admitir, em entrevista à CNBC, que a sua «principal tarefa» é evitar um outro resgate financeiro, depois do respeitado Financial Times escrever que «Portugal está no centro de uma tempestade perfeita».
Lembram-se do ministro Teixeira dos Santos, compungido, ao lado de Sócrates, quando este anunciou o desastre em 2011? E num ápice a euforia vestiu-se de depressão.
Pedro Passos Coelho pode estar outra vez condenado a apanhar as canas do foguetório das esquerdas. E enfrenta, ainda, uma teia encoberta que não vai a votos. Há agremiações que não desistem de sequestrar o futuro.