Síria: da trégua ao inferno

O cessar-fogo mais promissor da guerra revelou-se uma tragédia. O regime lançou-se na conquista total de Alepo.

Hoje parece quase impossível regressar ao grato pessimismo da primeira semana da trégua na Síria. Já todos tinham assistido ao ruir de vários cessar-fogos e poucos esperavam que a pausa negociada entre os Estados Unidos e a Rússia durasse muito tempo. Mas quando o sol pousou naquele fim de tarde do dia 12 e a festa do sacrifício do Eid al-Adha começou sem o som de caças do regime nos ares, muitos sírios pensaram que, pelo menos por alguns dias, teriam descanso da normalidade sanguinária de cinco anos e meio de guerra. Outros, principalmente nos bairros rebeldes de Alepo, o epicentro do conflito, esperavam conseguir alguma assistência humanitária, tão mais difícil de lá chegar desde que Assad e os seus aliados cercaram a zona leste da cidade com as suas mais de 250 mil pessoas.

E a verdade é que durante quatro dias ninguém morreu. Fosse civil ou combatente, por alguns dias ninguém tombou por um disparo ou uma explosão, mesmo que se fossem amontoando violações da trégua cometidas por ambos os lados, como sempre acontece nas curtas pausas. O pessimismo começava a dar lugar a uma espécie de otimismo cauteloso, mesmo que a assistência humanitária prometida ainda não tivesse chegado às zonas mais vulneráveis, em que a escassez de água potável, alimento e material médico é mais urgente. Não se morreu por quatro dias, é verdade, mas tudo ruiu em três. 

O fim do cessar-fogo na Síria foi mais súbito e violento do que mesmo o mais cético observador imaginava. Ninguém assume a sua responsabilidade, mas o desabar da calma começou no passado sábado, quando aviões e drones comandados pelos Estados Unidos bombardearam com uma eficácia impressionante dezenas de soldados sírios no leste do país. A coligação diz tê-los confundido com os combatentes do grupo Estado Islâmico que têm a pequena cidade de Deir Ezzor cercada há quase dois anos. No seu erro, matou mais de 80 militares e feriu mais de uma centena de sírios. Alguns soldados russos também. Moscovo pediu uma reunião de emergência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, Washington acusou-o de querer fazer apenas manobras mediáticas e perguntou a razão pela qual os russos – com quem, apesar de tudo, tinham negociado a trégua que ainda vigorava por aqueles dias – nunca tinham pedido reuniões quando hospitais e mercados eram bombardeados por caças seus ou do seu aliado e ditador Bashar al-Assad. 

Enquanto Estados Unidos e Rússia trocavam insultos diante jornalistas, Assad retomava os bombardeamentos contra Alepo. Primeiro com apenas algumas bombas, que imediatamente fizeram tremer as fundações da trégua, mas mais tarde com autênticas barragens de ataques aéreos. Só nas duas últimas noites caíram mais de duzentas bombas sobre os bairros rebeldes de Alepo. Muitas eram incendiárias:ardem a centenas de graus durante vários minutos e só muito dificilmente se apagam.Brilham também num branco intenso. Os ataques, contava um ativista ao Guardian, transformaram a noite em dia: «Estão tão próximos da minha casa que consigo ver o fogo. Há fogo no céu».

O regime foi mais além do que bombardear Alepo e enterrar efetivamente o cessar-fogo. Enquanto Rússia e Estados Unidos tentavam na quinta-feira em Nova Iorque o último esforço diplomático para ressuscitar a trégua, Damasco anunciava uma grande campanha para conquistar os bairros rebeldes onde vivem mais de 250 mil pessoas. O feito seria a sua vitória mais impressionante desde o início da guerra e uma pesada derrota para os grupos rebeldes, que dependem dos seus bairros em Alepo para preservar a pouca relevância que ainda têm.

Pelo caminho, uma coluna de assistência humanitária do Crescente Vermelho foi bombardeada em Alepo. Um armazém com bens de primeira necessidade também. Não se sabe ainda se os ataques foram obra do regime ou dos russos, mas há muito que Damasco segue a estratégia de matar a oposição pela fome e o desespero. Já quase não restam hospitais e mercados em Alepo, por exemplo. São recorrentemente atacados dos ares, ao ponto de hoje existirem menos de 40 médicos para 250 mil pessoas. A tática repetia-se ontem com o bombardeamento de três dos quatro centros de resgate médico da cidade. À calma da trégua seguiu-se a tempestade.