Ficou com o rótulo de segurista colado à pele, mas agora evita falar da vida partidária do PS. Recebe o i no Hospital de Santa Maria, de bata branca vestida, para falar da sua candidatura à Ordem dos Médicos. Diz que sairá da direção socialista caso seja eleito bastonário, mas a política nunca sai da conversa nem da sua vida. Desde pequeno que se habituou a ver medicina e política de mãos dadas. Aprendeu com o bisavô que foi médico, revolucionário e morreu pobre.
A candidatura à Ordem dos Médicos significa uma pausa na carreira política?
Eu não tenho carreira política. Tenho carreira médica. Aliás, tenho o orgulho de estar no topo da carreira médica. Fiz todas as provas públicas. Sou chefe de serviço, assistente sénior. Não encaro a política nem como carreira nem como vida, mas sim como atividade. Acho que toda a gente devia ter participação política. E os médicos tiveram sempre essa tradição: Miguel Bombarda, um grande republicano que foi assassinado pouco antes da República; António José de Almeida; o prof. Egas Moniz, que foi prémio Nobel da Medicina e ministro dos Negócios Estrangeiros; o prof. João Lobo Antunes, um neurocirurgião que foi conselheiro de Estado e um homem da cultura.
Portanto, a sua candidatura não o afasta da política?
Eu estou na política desde pequenino. Desde a escola que gosto de história e quem gosta de história normalmente gosta da política. Agora, uma coisa é gostar de política, ter um pensamento político, uma intervenção política, outra coisa é a vida partidária. Se for eleito bastonário, suspenderei obviamente toda a minha atividade partidária.
Sai dos órgãos do PS?
Sim. Suspenderei toda a minha atividade no partido. Mas nunca deixei de ser livre por ser militante partidário. Não dependo da política nem nunca dependi. E a liberdade individual tem muito que ver com o caráter das pessoas, não tem que ver com ser-se militante ou não. Há muitos que não são militantes de coisa nenhuma e são dependentes.
Como surge a decisão de se candidatar à ordem?
Foram umas conversas com amigos, colegas… A amizade entra sempre nestas questões. Eu fui presidente da Associação de Jovens Médicos, liderei os internos há 30 anos em lutas que tivemos, fui dirigente da ordem, fui diretor de campanha do atual bastonário, que é meu amigo. E acharam que eu devia voltar à minha vida mais associativa e desafiaram-me para isto. Confesso que hesitei muito e recusei essa ideia a princípio. Mas cheguei a um ponto em que não dormiria descansado com a minha consciência se não fizesse alguma coisa, no fundo, pôr ao serviço dos meus colegas e da medicina a experiência que ganhei, o saber que adquiri, a capacidade de intervenção pública que tenho. Porque a Ordem dos Médicos, mais do que tudo, tem de ser o garante da qualidade da medicina.
Mais do que uma ordem corporativa?
Sim. A ordem tem de ser o garante da qualidade da saúde. E terá de fazer auditorias aos serviços. Como eu também liderei o processo de elaboração das normas de atuação clínica, os meus colegas acharam que eu estava habilitado para isso. Por outro lado, a ordem tem de cuidar dos seus, nomeadamente dos mais velhos.
Há a ideia de que Ordem dos Médicos é uma instituição muito corporativa…
É verdade.
Isso é uma coisa negativa ou decorre da sua própria natureza?
É uma organização corporativa e tem de cuidar, nomeadamente, dos mais velhos. A ordem tem de ter uma componente social, que não tem hoje em dia, de cuidar dos colegas mais velhos, através de lares, casas de médicos… Falo em cuidar neste sentido, num aspeto social. Fazer acordos com misericórdias é uma ideia que estamos a explorar. Porventura, a gestão da ADSE será entregue em parte aos funcionários públicos e, dos 50 mil médicos, a esmagadora maioria são ou foram funcionários públicos. Por isso, os médicos vão ter uma palavra a dizer na própria gestão da ADSE. Eu acho é que a ADSE podia alargar o seu âmbito, nomeadamente à área social.
Mas já foi crítico da ADSE…
Não. Eu fui foi crítico de a ADSE estar a ser paga pelos impostos. Hoje, a ADSE é autossustentada. Todos os anos, o Orçamento do Estado punha lá uma fatia. A ADSE tornou-se sustentável e é o melhor seguro de saúde do país. No fundo, é um seguro público. E quem tem gosta.
Mas que dá muito negócio à medicina privada…
É verdade. Mas a questão é alargar o âmbito da ADSE para cuidados continuados e lares. Isso, eu acho que é positivo. Uma coisa que me tem impressionado muito é que muitos colegas mais velhos, que deram a vida toda à medicina, estão numa situação difícil, sozinhos e com pensões muito baixas.
Há a ideia de que a classe médica é uma classe privilegiada.
Pois. Mas é uma ideia errada. O que nós temos é a honra de curar pessoas, esse é o privilégio. Não são só os médicos, os enfermeiros e os auxiliares também. Mas há muitos médicos em situação muito difícil, nomeadamente os mais velhos, do ponto de vista financeiro e do ponto de vista humano.
Isso resulta dos anos da troika?
Dos anos da troika resulta o facto de haver muitos médicos em burnout e numa situação financeira difícil. Trabalham imenso. O Estado desinvestiu na saúde e, ao desinvestir nos profissionais, obrigou-os a ir procurar o privado. O ideal seria que o Estado pagasse convenientemente a quem está no setor público e que as pessoas não tivessem de procurar emprego no privado. Não tenho dúvidas de que a esmagadora maioria dos médicos do privado, se tivesse dignidade profissional e satisfação pessoal, técnico-científica e também financeira, não teriam de ter atividade privada.
Defende um regime de exclusividade?
Não. Defendo é que haja incentivos a que as pessoas trabalhem no seu sítio com dignidade. Sou é completamente contra a contratação de médicos por empresas com trabalho médico à hora. Isso não faz qualquer sentido. Já agora, as carreiras médicas, que são um pilar central do sistema, deviam ser estendidas ao setor privado. A Ordem dos Médicos não é a Ordem do Serviço Nacional de Saúde (SNS). É a ordem de todos os médicos.
E tem de cuidar de que os médicos sejam tratados com dignidade, e isso nem sempre acontece, no público e no privado. Porque, depois, o privado esmaga. Esta é uma profissão nobre, exigente, de muito estudo. Eu só fui para o Algarve ter férias depois de ser médico. Nunca consegui passar umas férias no Algarve. O curso é muito difícil, os exames para as especialidades são muito difíceis. Isto dá muito trabalho. Passei muitos natais e muitas noites de ano novo a trabalhar. Há muitos que estão bem, mas a esmagadora maioria não está.
E os jovens médicos? Aí também há problemas…
Está a acontecer-lhes o que aconteceu comigo há 30 anos. Eu meti-me nisto há 30 anos porque um colega meu, que era o melhor aluno do curso, foi um dia ter comigo a casa porque a ministra da Saúde, na altura, ia tirar o salário ao chamado internato geral e ia dar um subsídio que era metade do valor. E ele disse-me: “Eu sou bolseiro, sou pobre, não tenho dinheiro para viver assim.” Eu não tinha a noção de que era assim. Tive sorte, nunca tive dificuldades. E meti-me nessa luta. Foi aí que me meti nestas questões associativas. E nós conseguimos, na altura, que o internato fosse pago. Hoje estamos aqui outra vez com a mesma situação. Há muitos médicos que não conseguem entrar para a especialidade porque não têm lugar. Abriram-se, quanto a mim, exageradamente as faculdades de medicina.
O país não precisa de mais médicos?
Os médicos estão mal distribuídos. Estão muito nas cidades e pouco no interior. Mas tem de haver incentivos para os levar para o interior.
O anúncio que António Costa fez de incentivos já é um bom sinal?
É. Tudo isso é bom.
Chega?
Não sei se chega. Veremos. A questão é que é preciso começar esse caminho. Agora, há de facto médicos mais jovens com poucas expectativas de trabalho e muitos deles já estão a pensar em emigrar. Como os enfermeiros emigraram nos tempos da troika.
Os médicos jovens ganham mal?
Não. São mais bem pagos lá fora. Para a qualidade que tem o ensino cá, ganham mal. Os médicos e os enfermeiros portugueses são dos melhores do mundo e cá não são remunerados de acordo com isso. É preciso investir no setor da saúde, mas de uma forma racional.
Como?
A organização do trabalho na saúde, cada vez mais, é multidisciplinar, em rede e em equipa. Há trabalho que dantes só era feito por médicos que hoje é feito, e bem, por enfermeiros. Portanto, com menos médicos é possível até fazer melhor. Mas é preciso uma liderança médica porque, em último caso, quem faz o diagnóstico são os médicos. E, às vezes, isso não está bem definido. Aliás, eu critiquei a lei dos atos de saúde porque tem de ficar lá escrito que a liderança é médica. Dito isto, é preciso que cada português tenha um médico de família, mas é preciso também que cada português tenha enfermeiros de família. O rácio em Portugal é quase um médico e um enfermeiro nos cuidados primários. Não pode ser. Tem de ser um médico para três enfermeiros ou quatro. O que não quero é que cada família portuguesa tenha um médico na família.
É uma crítica recorrente à ordem a de que defende o numerus clausus para defender o estatuto dos médicos…
Eu não sou nada corporativo. Por isso hesitei muito em me candidatar à ordem. Aqui, no Santa Maria, criei há um ano uma consulta de coagulação que dantes era só feita por médicos e agora é 70% feita por enfermeiros. Nunca serei bastonário para defender os médicos. A ordem tem de defender a medicina e tem de ser o garante da qualidade dos serviços de saúde.
Não há médicos a menos em Portugal?
Não. Temos um rácio que já está acima da média europeia. Temos é médicos mal distribuídos.
Disse que há um desinvestimento no SNS. Começou quando?
Há muitos anos. Há mais de dez. No tempo da troika foi acelerado.
Vê perspetivas de reversão desse desinvestimento?
Vejo. Temos um governo muito empenhado na saúde. O António Arnaut foi homenageado por este governo. Eu tenho a certeza de que há vontade. A questão é que é preciso que a realidade case com a vontade. Sabemos que existem constrangimentos, mas a vontade já é meio caminho andado. O investimento deve ser a vários níveis. Não é só na questão dos médicos. Também é uma questão de organização. Portugal tem um sistema de saúde muito complexo. Há hospitais sozinhos, há hospitais com cuidados de saúde primários, um sistema muito emaranhado de convenções com privados, a ADSE. Mas isso não me compete a mim, compete aos governos. À Ordem dos Médicos, o que compete é fazer auditorias aos serviços de saúde, públicos ou privados, ser verdadeiramente a entidade reguladora da saúde. Não é no papel, é na prática. Ser exigente. Aqueles que não cumprirem as normas não vão ficar aprovados.
Em casos de negligência médica há a ideia de que, muitas vezes, não há a colaboração da ordem para levar avante os processos…
A ordem tem de ser exemplar nisso. Mas com este bastonário já houve uma viragem, porque a ordem tem de ser exigente com os seus membros. É uma instituição com poderes delegados do Estado para a autorregulação. A ordem não é sindicato.
Mas há questões que cruzam a qualidade com a questão laboral. A ordem pode ter um papel na limitação do número de horas de trabalho dos médicos?
Tem de estabelecer critérios. Tem de criar grupos de trabalho sobre isso e estabelecer regras. Mas porque é que se chama internos aos jovens médicos? A ideia é dos anglo-saxónicos, porque dormem nos hospitais. Durante o período de formação é quando os médicos trabalham mais e muito intensamente. Claro que tem de se estabelecer limites para isso e não explorar os mais jovens.
Um médico não pode trabalhar 24 horas?
Exatamente. Tem de se ter conta, peso e medida. A ordem tem de zelar por isso e, depois, os sindicatos tratam de negociar.
Que avaliação faz do trabalho do ministro da Saúde?
Sou um bocado suspeito. Temos a mesma idade, ele é mais velho que eu um dia, conhecemo-nos há 30 anos e somos amigos. Acho que ele é a pessoa mais bem preparada para ser ministro da Saúde em Portugal, independentemente da cor política.
E terá peso político suficiente no governo?
É um homem muito inteligente. E o ministro da Saúde tem sempre muito peso político, porque a saúde – muitas vezes pelas más razões – está sempre debaixo de fogo.
É vantajoso ter um médico como ministro da Saúde?
É. Ele, ainda por cima, concilia as duas características. É médico e gestor. É mais fácil fazer de um médico um bom gestor e um bom ministro do que fazer de um bom gestor um bom gestor em saúde. É uma pessoa muito preparada para uma tarefa dificílima que é esta de construir um SNS e um sistema de saúde equilibrado e que satisfaça as necessidades dos portugueses. Mesmo nestes anos difíceis, quem ampara as pessoas é o SNS.
A saúde em Portugal é boa?
Temos uma saúde melhor do que o país. A atividade a que somos melhores a nível mundial é o futebol. Não vale a pena estar a competir com o Cristiano Ronaldo. Mas, a seguir ao futebol, a atividade em que Portugal tem um nível de excelência, superior ao país, é a saúde.
Mas há muitas queixas…
Há. Há queixas em todo o lado. Mas isso não é só cá. Há problemas, claro que há. Mas temos serviços de excelência e temos cuidados de saúde muito melhores do que nos Estados Unidos, mas não só. A nível europeu estamos muito bem em vários rankings. Na mortalidade infantil, no aumento da longevidade da população… temos grandes melhorias. Agora, ainda temos carências, temos, e eu conheço-as. Eu estive no interior. Sei o que é a falta de cuidados em algumas áreas do país.
O que precisa de ser feito para esta legislatura ser um sucesso em termos de saúde?
Em termos do sistema de saúde, a principal questão é a do acesso, acabarem as listas de espera ou diminuí-las muito. Esse é o maior problema que as pessoas têm. E todos os dias trato dele, porque todos os dias ajudo pessoas a tentarem entrar no sistema porque me pedem. É a vida, faz parte.
Isso não é condenável?
Ajudar pessoas? A minha vida é ajudar pessoas. É o que faço, faço com gosto e nunca digo que não. Tenho dificuldade em dizer que não e quando me pedem alguma coisa faço, só se eu não puder… Muitas coisas, não consigo. Mas é preciso um Simplex para a Saúde para simplificar as formas de acesso, nomeadamente com a possibilidade da livre escolha. Os cidadãos devem ter o direito, dentro da possibilidade do sistema, de escolher o seu médico para ter relações de confiança com ele. Nem sempre será possível. Mas deve tentar-se ao máximo que seja possível. E isso é algo que o ministro da Saúde também defende.
O facto de a média de entrada em Medicina ter sido ultrapassada pelas engenharias é sinal de quê?
É sinal de que o mundo é cada vez mais tecnológico e que a engenharia é muito pretendida, o que é positivo. E é bom porque Portugal precisa muito de engenheiros e de indústria. Mas o reitor da Universidade do Porto explicou bem. Hoje há cursos de Engenharia em que só entram 50 alunos e em Medicina entram 160. Alargaram-se as entradas em Medicina e fecharam-se nas engenharias.
Não tem que ver com uma degradação do estatuto dos médicos?
Começa a haver dificuldades para médicos. Há jovens médicos que já acham que não vão poder trabalhar em Portugal e que vão ter de emigrar, as pessoas sabem e, portanto, acham que a medicina já não tem as saídas que tinha no passado. Houve uns tempos em que havia médicos a menos. Agora abriu-se tudo para poder haver médicos a mais. Talvez no meio termo é que esteja a virtude.
Vê com bons olhos cursos de Medicina privados?
Eu acho que os cursos que há já chegam, e chegam os públicos. Provavelmente, algumas faculdades de Medicina até se poderiam fundir ou trabalhar mais em conjunto.
Tem um filho…
Tenho um filho de 11 anos que quer ser engenheiro.
Gostava que ele fosse médico?
Gostar, gostava. Mas eu quero é que ele seja o que quer ser. Eu tive a sorte de fazer o que quis.
Porque quis ser médico?
Eu, quando era miúdo, tinha muitas doenças. E o meu avô – fui criado pelo meu avô – era empresário porque o meu bisavô teve dificuldades e ele teve de começar a trabalhar muito cedo, mas gostava de ter sido médico. E contava-me histórias de médico do meu bisavô. O meu bisavô foi médico no Porto, republicano, na altura em que os médicos tinham muita participação política… amigo do António José de Almeida, que foi Presidente da República. E eu adorava as histórias do meu bisavô, das revoluções republicanas contra a monarquia. Ele era médico dos ferroviários e morreu pobre, mas ajudou muita gente. Desde miúdo que pensei que queria ser médico, mas também sempre gostei de história e, no fundo, de política. Quando fui para Medicina, o meu avô ficou muito contente. Quando começou a ver-me metido na política, ficou muito triste e preocupado.
Imaginou que ia repetir a história…
Exatamente. Porque o meu bisavô depois, com o Salazar, teve uma vida muito difícil. Acabei por seguir um bocadinho as pisadas do meu bisavô.
Portanto, para si, medicina e política estão muito ligadas…
O meu avô dizia uma coisa que eu acho que é uma grande verdade. Nós, na medicina, temos um grande contacto com a realidade social e, mais do que noutras profissões, temos contacto com os problemas, a miséria… e somos sensíveis. E daí lutarmos politicamente. É natural. Nos últimos anos há menos médicos na política. Ela tornou-se mais dos advogados, e até dos engenheiros e dos economistas. Eu sempre defendi que os médicos tenham mais intervenção política, porque têm uma sensibilidade social. A nossa vida é isso. Um médico que não saiba ouvir e compreender as pessoas não sabe medicina.
O seu bisavô teve problemas quando a onda política mudou. No seu caso, sendo segurista, foi para a direção de António Costa…
Não tenho problemas nenhuns. Os tempos mudaram muito.
Neste momento, já faz uma análise positiva da geringonça?
Como sabe, tive reservas em relação a isso e disse que esperava não ter razão porque, se tivesse razão, era mau para todos.
Um ano depois, está convencido?
Continuo na mesma. Tenho reservas. Há coisas boas e coisas más. É como tudo na vida. Mas prefiro abster-me de fazer esses comentários porque já fiz os suficientes.