Com 67 anos completados na passada sexta-feira, dia 23, há mais de 40 anos que Bruce Springsteen se mantém, com interrupções aqui e ali, no topo. O estrelato chegou em 1975, precisamente com o álbum “Born to Run” e com direito a capa das revistas “Time” e “Newsweek” na mesma semana.
Mas recuemos à sua infância, ao tempo em que nada podia fazer prever a carreira que aí vinha.
A mais antiga ligação à música remonta às noites em que, na companhia do avô, dono de uma loja de reparações elétricas, vasculhava o lixo “à procura de rádios, quaisquer rádios, independentemente do estado em que se encontrarem. […] Quando os encontramos, atiramo-los para a mala do carro para os levarmos para casa, para ‘o abrigo’, o cubículo de madeira do meu avô, de dois metros por dois e sem aquecimento, num canto da nossa casa. É um sítio onde a magia acontece. Sento-me ao lado dele, naquele espaço cheio de fios elétricos e tubos de filamentos, a observá-lo atentamente, enquanto ele liga, solda e troca tubos estragados por tubos bons, ambos à espera do mesmo momento: o instante em que um sussurro, o maravilhoso zumbido da estática e o brilho quente e evanescente da eletricidade voltam a emanar dos esqueletos mortos dos rádios que salvámos da destruição”, conta em “Born to Run”.
Bruce cresceu em Nova Jérsia, rodeado de personagens que pareciam saídas da série “Os Sopranos”. Uma delas era o seu avô materno, que trocara Itália pelos EUA quando tinha apenas 12 anos. “O meu avô tinha quadros, dos bons. Colecionava arte sacra, roupões e mobiliário antigo. Tinha um piano na sala de estar. Viajava, tinha um ar bastante mundano e um pouco dissoluto. […] Sentava-se muitas vezes, como um velho príncipe italiano, no seu escritório, numa cadeira que parecia um trono. […] Tinha um dólar numa mão. Dava-mo todos os domingos, mas eu tinha de ir buscá-lo. E era preciso aguentar o que ele tinha na outra mão: o ‘beliscão da morte’.”
Durante a infância viveu com os pais, a irmã e os avós paternos num grande casarão decrépito. “Nesta casa, devido à ordem dos nascimentos, mas também a outras circunstâncias, eu era ao mesmo tempo senhor, rei e messias. […] Ninguém me impunha limites. Era uma liberdade terrível para um miúdo e eu aproveitei-a completamente. Com cinco ou seis anos, ficava acordado até às três da manhã e dormia até às três da tarde. Via televisão até ao fim da emissão e, depois, ficava sozinho a ver a mira técnica, de olhos esbugalhados. Comia o que queria às horas que queria.”
Mais tarde, relata no livro, “quando cheguei à idade de ir para a escola e tive de obedecer a um horário, nasceu em mim uma raiva interior que durou a maior parte da minha vida de estudante.” De resto, não guarda boas recordações desses anos. “Os meus colegas da escola eram, em geral, pessoas de bom coração. Mas havia alguns que eram malcriados, agressivos e antipáticos. Foi aí que fui vítima do bullying que todos os aspirantes a estrelas de rock têm de aguentar num silêncio raivoso, cruel e humilhante, a terrível solidão de estar encostado ao muro da escola, enquanto o mundo gira à nossa volta, para lá de nós e a rejeitar-nos ostensivamente, combustível para o fogo que há de vir.”
Em contrapartida, o seu lado sensível conquistava as boas graças das colegas. “Acabei, assim, por criar um pequeno harém, que me apertava os sapatos, fechava o casaco e me enchia de atenções.”
Foi também na escola de freiras que o jovem Bruce Frederick Joseph perdeu a fé – ou pelo menos assim acreditava na altura – quando, a pedido da professora, um “marrãozinho gorducho” lhe deu um estalo por estar distraído. “Ao longo da primária, já me tinham batido com a régua nos nós dos dedos ou puxado a gravata até sufocar; já me tinham dado carolos e enfiado de castigo num armário ou na lata do lixo enquanto diziam que aquele era o meu lugar. Tudo bastante normal para uma escola católica nos anos 50.”
Mais tarde veio a descobrir que afinal não era assim tão fácil ver-se livre da religião. “À medida que os anos iam passando, havia certas coisas na forma como pensava, reagia e agia que me levaram a perceber, contrariado mas ao mesmo tempo divertido, que, quando se é católico, é-se católico para toda a vida.” Hoje, revela, “por muito estranho que possa parecer, tenho uma relação ‘pessoal’ com Jesus. Ele continua a ser um dos meus pais, apesar de, tal como acontece com o meu próprio pai, eu já não acreditar no seu poder divino.”
A doença mental do pai, o seu alcoolismo e a sua agressividade em casa são um tema encarado com frontalidade no livro. “Infelizmente o desejo do meu pai de interagir comigo chegava quase sempre depois do ritual religioso noturno do ‘sagrado pack de cervejas’. Cervejas, umas a seguir às outras, na escuridão total da nossa cozinha. Era sempre nessa altura que ele queria ver-me e acontecia sempre o mesmo. Alguns momentos de falsa preocupação parental pelo meu bem-estar e, a seguir, a verdade vinha ao de cima: a hostilidade e a raiva crua contra o filho, o único homem da casa. Era uma pena. Ele adorava-me, mas não me suportava. Sentia que disputávamos o afeto da minha mãe. E era verdade”.
Mandatado pela mãe, cabia muitas vezes a Bruce ir chamar o pai ao bar onde este passava as noites. E certa vez, ao ouvir uma discussão violenta na cozinha, resolveu descer as escadas e intervir: “Eles estavam de pé, o meu pai de costas para mim, e a minha mãe a poucos centímetros da cara dele, enquanto ele gritava a plenos pulmões. Dei um berro e mandei-o calar. Depois, assentei-lhe o taco bem no meio dos ombros largos, com um baque surdo, e fez-se silêncio”.
O pai teve uma reação completamente inesperada. “Ele voltou-se para mim, com a cara vermelha, como quando estava no bar; o momento prolongou-se e, depois, desatou a rir. A discussão parou. Tornou-se uma das suas histórias preferidas.”
Está disponível a partir de hoje “Born to Run”, a autobiografia de Bruce Springsteen. Aqui revelamos-lhe como foram os primeiros anos da vida do músico: um pai alcoólico, uma mãe protetora, bullying na escola e uma “liberdade terrível”