Em agosto, o agente André Correia recebeu pelo correio uma caixa de chocolates vinda da Suíça com uma nota de agradecimento. A história desta caixa de chocolates começou em julho, quando um casal de turistas deste país ficou sem a carteira durante uma estada em Lisboa. A carteira acabou por aparecer com os documentos na esquadra de Turismo do Comando Metropolitano de Lisboa, no Palácio Foz, e o agente resolveu enviá-la, a expensas próprias, ao casal de turistas. Esta não é, no entanto, uma situação inédita: quase todos os agentes desta esquadra têm histórias semelhantes para contar. Carteiras furtadas, roubos de oportunidade e extravios são, efetivamente, as denúncias mais comuns e, no dia em que o i visitou o local, essas eram as queixas, na esmagadora maioria, de turistas que esperavam a sua vez.
“Há um aumento das denúncias porque o turismo aumentou substancialmente em Lisboa. Neste momento rondam as sete mil denúncias por ano”, explica a comissária Carina Sousa, à frente da esquadra há cerca de um ano.
A esquadra é fisicamente semelhante a tantas outras e, para sermos sinceros, não é mais do que uma pequena e abafada sala do Palácio Foz, forrada a cadeiras azuis. É tão discreta que é provável que já tenha passado por lá e nem reparou. Mas quem entra percebe que é um local diferente dos outros, nem que seja pelo burburinho de tantas línguas que por ali se ouvem. Não são apenas os turistas que enchem o espaço com os diferentes idiomas: a equipa de agentes da PSP que aqui trabalha responde à letra ou, mais literalmente, à língua. Inglês, francês, espanhol, alemão, italiano e até russo são as línguas dominadas e faladas pela equipa que, no ano passado, teve inclusivamente uma formação em mandarim.
“Temos o cuidado de ir rodando os agentes por turnos para termos o máximo de idiomas possível. O inglês e o espanhol falam todos; as restantes línguas, apenas alguns”, diz a comissária, acrescentando que, com a enchente de turistas em Lisboa, começa a ser difícil perceber quais as nacionalidades mais “comuns”.
Nesta espécie de Torre de Babel da PSP, os agentes começam também a sentir cada vez mais que não há picos de denúncias. “Antes, obviamente, recebíamos mais denúncias durante o verão, mas cada vez mais o turismo existe ao longo do ano inteiro”, diz Carina Sousa.
Ainda assim, turistas e autoridades consideram que Portugal é um país tranquilo nestas matérias. “Portugal é um país extremamente seguro. É importante realçar que, apesar dos números dos furtos, nestes casos não é exercido qualquer tipo de violência sobre a vítima ”, diz o chefe Marques, que trabalha na esquadra desde 1993 e está, por isso, bem ciente das flutuações.
Na tarde em que o i visitou a esquadra, todas as cadeiras azuis estavam preenchidas por pessoas com mapas em punho, chapéus de palha e máquinas fotográficas a tiracolo – turistas, portanto. A enchente foi-nos descrita como uma situação “atípica”. “Provavelmente deve ter chegado um cruzeiro”, comentava um agente dentro da sala.
Os turistas que ali chegam tiram primeiro uma senha – logo ali podem escolher entre o inglês, espanhol, francês e alemão. Depois aguardam pelo atendimento, em que lhes são pedidos os dados, desde o país de origem à denúncia propriamente dita e ao local onde estão alojados. A equipa está também habituada a lidar com as embaixadas e a reencaminhar os turistas que ficaram sem passaportes e precisam, por isso, de uma guia para poderem regressar ao seu país. “A maioria das pessoas chegam aflitas e nervosas, e costuma serenar após perceberem que a situação pode ser resolvida, pelo menos a parte de voltarem para casa”, diz a comissária.
Se os turistas chegam de cara fechada, é também normal saírem dali a elogiar o… país. “Os próprios turistas, quando vêm cá fazer as denúncias, ao conversarem com os polícias, tendem a fazer comparações com outros sítios onde já passaram e dizem que, apesar de terem sido furtados, sentem que estão num país seguro”, explica Carina Sousa. E entre furtos, roubos e extravios continuam a existir “milagres”: o i testemunhou um deles. Uma turista finlandesa tinha acabado de tirar uma senha de atendimento – ficara sem o passaporte e a carteira, cheia de dinheiro e documentos. Esperava na fila quando um dos agentes a reconheceu da fotografia do passaporte que segurava nas mãos e que acabara de ser entregue na esquadra. “Is that you?” E era mesmo. Seguiu-se uma cena de choro de alegria, quando a carteira intocada e o passaporte foram entregues à respetiva dona que, refugiando-se na timidez, pediu para não ser fotografada.
À porta, uma outra turista francesa de meia-idade mete conversa com toda a gente. Tal é o ânimo que nem parece que lhe acabaram de furtar a carteira. “Acho que foi à saída de uma loja, senti um encontrão”, conta. Assim como a maioria dos turistas a quem são furtadas carteiras, também esta senhora apenas sabe precisar quando percebeu que já não tinha a dela. “Pode ser que apareçam os documentos, que a ponham no lixo ou assim”, consola-a outro turista. “Duvido, porque era uma carteira muito boa”, responde a rir. Perante tanta boa disposição, não resistimos a perguntar se não está aborrecida ou não se sente insegura. “Estas coisas acontecem em todo o lado, é melhor ser uma carteira roubada do que bum!”, diz, imitando o som de uma explosão, em alusão a ataques terroristas. “Também tive alguma culpa, sentia-me tão segura que acho que relaxei demais”, admite. O chefe Marques começa a conversar em francês com a senhora – minutos antes falara-nos, orgulhoso, da longa história da “sua” esquadra.
Uma polícia pioneira Em meados de 1800 – ainda a PSP era conhecida pelo nome de Intendência da Polícia da Corte e do Reino –, já “havia registo de polícias destacados para ir para o Porto de Lisboa para a chegada dos navios, a fim de acompanharem os turistas que chegavam à cidade”, conta Carina Sousa. “E até há registo de multas para pessoas que não eram propriamente educadas para com os turistas, o que mostra que o turismo sempre foi uma das missões da polícia”, diz a comissária.
“Somos uma das polícias pioneiras nessa matéria”, continua o chefe Marques. “Em 1998, por causa da Expo, ainda se deu mais impulso a essa vertente. Foi nessa altura que saímos da salinha onde estávamos, no Comando Metropolitano, e viemos para estas instalações, e o reforço de meios tem vindo a aumentar à medida que o turismo aumenta.” Neste momento há já uma segunda esquadra semelhante, a funcionar em Santa Apolónia. E estes agentes até se podem gabar de ter servido de inspiração para outras polícias. “Por exemplo, nos Jogos Olímpicos de Sydney [2000], a polícia australiana veio cá perceber como funcionávamos para criar uma unidade similar lá, já prevendo o aumento do número de turistas. E depois, nos Jogos Olímpicos de Atenas [2004], foi a mesma coisa, também nos solicitaram o modelo. Ficámos muito contentes com isto, só prova que há coisas feitas em Portugal que servem de inspiração no estrangeiro.”
Para além da inspiração, também a inovação faz parte do vocabulário destes polícias. Por isso é que os serviços destes agentes já não estão confinados às paredes da esquadra. Há serviços no exterior protagonizados por duas equipas de modelo integrado de policiamento de proximidade (MIPP), que usam um polo azul-claro e se deslocam num Nissan Leaf, um carro 100% elétrico rapidamente identificado até porque diz, na parte lateral, “tourist support”. “Esses agentes fazem policiamentos de visibilidade em locais com muitos turistas, vão dando conselhos de segurança, tiram dúvidas e, desde há seis meses, têm outra missão: a pós-vitimação. Ou seja, aos turistas que foram sujeitos a um roubo mais violento ou outra situação mais delicada, e que não abandonem imediatamente o país, durante um ou dois dias recebem uma visita das equipas MIPP. Elas deslocam-se ao local onde o turista está alojado para perceberem se é preciso apoio extra e verificarem como está o processo”, define a comissária.
Uma das equipas MIPP acabara de chegar de Belém e não vinha sozinha: tinham dado boleia a uma turista coreana que saiu do elétrico 28, em Belém, com… menos bens do que os que possuía quando entrou.
Durante uma volta pelos pontos turísticos mais turísticos da capital, os agentes MIPP de plantão, Correia e Carvalho, confirmam o que a turista francesa nos confidenciara à porta da esquadra. “As pessoas relaxam nas férias, é normal, e quem furta está à espera disso mesmo.” Mesmo no caso dos turistas mais atentos, os agentes explicam que os carteiristas têm formas de atuar tão discretas que já ouviram histórias de furto que parecem impossíveis. “Tivemos um senhor de 70 anos ao qual furtaram uma carteira das cuecas”, diz o agente Hélder Carvalho. “E também muitos polícias que ficaram sem a carteira. Australianos e americanos são aos montes”, completa André Correia.
Numa paragem à porta do Castelo de São Jorge são continuamente abordados por turistas que lhes pedem informações. “Somos um bocadinho um posto de turismo ambulante”, confessa o agente Correia, já habituado a que lhe peçam direções. “E caso lhes falem em mandarim?”, perguntamos de forma provocatória. Hélder Carvalho ri e atira de rompante: “Nǐ hǎo” [olá], “zǎo shàng hǎo” [bom dia], “shì” [sim], bù shì [não], xiè xiè [obrigada]. Como veem, já dá para o gasto!”