Não me lembro de um livro em Portugal suscitar tamanho abalo nos meios políticos e jornalísticos. E confesso que nunca pensei que este livro pudesse despertar tanta raiva. Curiosamente, políticos e jornalistas, que em geral estão em campos diferentes, deram as mãos para me lançarem uma fatwa e me exporem ao «opróbio público». Nem os atentados terroristas foram repudiados de forma tão unânime.
Nestas questões, é usual dizer-se: «Não li o livro e portanto não me pronuncio sobre ele». Mas aqui passou-se o contrário. Disse-se: «Não li o livro mas mesmo assim digo mal dele». Pessoas que reconheceram não o ter sequer aberto chamaram-lhe «vómito», «esgoto», «lixo», «nojo», «abjeção», «pestilência», «asco», etc. Tudo palavras simpáticas.
Mas, tanto quanto sei, nenhum dos protagonistas desmentiu o que o livro relata. Portanto, pergunto: a ‘pestilência’ estará no livro ou na realidade que ele desvenda? O que indignou muita gente foram as ‘indiscrições’ do livro ou o facto de este destapar uma realidade que se quereria escondida? Se calhar, como diria Eça, o livrou retirou «o manto diáfano da fantasia» e mostrou «a nudez forte da verdade».
Enquanto eu era insultado por ter escrito o livro, Pedro Passos Coelho era criticado por ter aceitado apresentá-lo e a Gradiva era atacada por o ter publicado. Ou seja, o livro deveria pura e simplesmente ter sido censurado. Alguns devem ter lamentado já não haver Inquisição, para poderem queimar o livro em auto de fé, e talvez com ele o seu autor. Sentiu-se o ambiente pesado dos momentos que precedem a instauração da censura.
O primeiro-ministro chamou o assunto ao Parlamento e atacou Passos Coelho por ele se ter proposto apresentar um «livro de mexericos». Fizeram-se debates nas televisões para discutir o livro, ou melhor, para insultar o autor, pois os participantes declaravam não ter lido o livro nem o irem ler. Cada crónica que saía na imprensa era mais terrível do que a anterior.
Houve jornalistas que desmarcaram entrevistas ou pré-publicações já combinadas, declarando-me proscrito. Outros telefonaram-me cheios de mesuras, falei-lhes confiadamente e depois construíram a partir dessas conversas textos carregados de ofensas. Uma revista pediu-me uma entrevista, abri-lhe as portas de casa, e acabou a chamar-me «traidor» e autor de um «crime».
Claro que tudo isto provocou uma corrida às livrarias. Nalgumas formavam-se filas para comprar o livro. Noutras, onde estava esgotado, havia longas listas de reservas. Todos os dias começaram a imprimir-se novas edições.
Nunca esperei que isto pudesse acontecer. Tinha a noção de ter escrito um livro polémico – mas não tive a noção de escrever um livro escandaloso. A verdade é que já vou no terceiro livro de memórias e nunca ocorreu nada de parecido. Percebi que a distância entre o silêncio e o escândalo é muito pequena. Basta uma faísca para incendiar a imprensa e as redes sociais – e depois o incêndio lavra sozinho.
Mas afinal qual foi o meu ‘crime’? Foi pegar em conversas que mantive com políticos durante 40 anos, agarrar em notas e trocas de correspondência, consultar um Diário que escrevi intermitentemente ao longo deste tempo – e com esse material publicar um livro de memórias. Onde se cruzam os relatos de acontecimentos importantes feitos pelos próprios protagonistas, factos curiosos, apontamentos de reportagem aparentemente insignificantes mas reveladores. E de tudo isto resultam retratos dos políticos que têm marcado o nosso tempo: Eanes, Cunhal, Soares, Barroso, Guterres, Sócrates, Passos Coelho, etc. E banqueiros como Jardim Gonçalves, empresários como Hélder Bataglia ou economistas como Ernâni Lopes.
Perante a violência dos ataques, fui reler o livro. Talvez eu pensasse ter escrito uma coisa e o resultado tivesse sido outro. Tentei colocar-me na posição do leitor e tirar conclusões. E o que vi? Um livro escrito numa linguagem simples como água, que não distrai o leitor do que se quer contar. O tom parece sincero e nota-se uma preocupação de rigor: os encontros, por exemplo, são localizados no tempo e no espaço, dizendo-se quando e onde tiveram lugar. Não se fazem insultos, e as conversas nunca são usadas para prejudicar os próprios (embora possam ser incómodas para terceiros). Nas partes mais sensíveis do ponto de vista pessoal, percebe-se uma preocupação de contenção, de refreamento na escrita, adivinhando-se que o autor sabe mais do que escreveu. Há uma sensação geral de que o que ali está escrito é verdade, até porque o autor separa aquilo a que assistiu do que lhe foi dito.
Esta foi a ideia que retirei do livro, relendo-o agora já encadernado.
Mas, voltando à condição de autor, passo a responder ponto por ponto às principais críticas que ouvi – não fugindo às questões mais delicadas. E não insultando os críticos, na convicção de que os insultos revelam sobretudo a natureza de quem os profere.
1.ª crítica: O livro não respeita as regras jornalísticas nem a deontologia profissional
Aqui reside um primeiro grande equívoco. Eu e os Políticos não é um trabalho jornalístico – é um livro de memórias, que obedece a regras diferentes. Qualquer livro de memórias utiliza conversas privadas, descreve bastidores de acontecimentos, não evita intromissões na esfera íntima, e chega a revelar segredos de Estado (considerando que os segredos têm um prazo de validade).
As regras das memórias são diferentes das regras jornalísticas por todas as razões: as memórias são confessionais, intimistas, escritas na primeira pessoa, têm uma circulação restrita (normalmente em livro) e respeitam um hiato de tempo entre os acontecimentos e o momento da sua revelação. Falar de ‘regras jornalísticas’ não faz aqui qualquer sentido.
2.ª crítica: O livro não devia revelar segredos pessoais
Este é o segundo equívoco. O livro não revela qualquer segredo que me tenha sido confiado. O livro revela conversas descontraídas com políticos que espontaneamente me contaram o que quiseram contar.
Nunca cultivei a cumplicidade com políticos, por isso nada me foi dito em ambiente cúmplice. Mas, mesmo assim, guardei na gaveta por minha iniciativa algumas conversas durante 20, 30, 40 anos… E descrevo-as numa linguagem objetiva, serena e pouco adjetivada. Nunca as uso, como disse, para comprometer os meus interlocutores. Nunca os ridicularizo nem amesquinho.
3.ª crítica: É um livro de ‘mexericos sexuais’
Esta afirmação é completamente falsa e destinada a enganar os incautos. Cabe na cabeça de alguém que uma pessoa que foi diretor de jornais políticos durante mais de 30 anos, que deu aulas na Universidade Católica durante mais de uma década, que tem 13 livros publicados, entre ensaios, romances e volumes históricos, fosse escrever um livro sobre ‘mexericos sexuais’? A verdade é que, ao longo das 263 págs. do livro, há apenas 3 ou 4 referências de natureza sexual – ou seja, uma por cada 80 págs. Fi-las quando me pareceram relevantes e nunca de forma gratuita. E escrevi-as com todos os cuidados e com poucos pormenores. Todas as biografias de políticos, de Clinton a Mitterrand, passando por JFK, incluem referências à sua vida amorosa. Faz parte integrante dos seus retratos.
4.ª crítica: O livro foi escrito com intuitos de vingança
Só o autor sabe as intenções com que escreve um livro. Ninguém mais. Fizeram-me inúmeros processos de intenção. Disse-se que escrevi o livro para me vingar deste ou daquele.
Ora, a verdade é que escrevi o livro para ficar como um testemunho deste tempo que só eu poderia fazer pelo material que reuni. E fi-lo, como disse, através dos seus protagonistas, com histórias contadas pelos próprios – e, neste sentido, elas ganham uma força e uma autenticidade particulares. Muito poucas pessoas tiveram acesso ao conjunto de personalidades que conheci e com quem falei cara a cara. E em relação a todos os que figuram no livro procurei aplicar os mesmos critérios de imparcialidade, isenção e honestidade. Mas factos são factos e nem todos são agradáveis.
5.ª crítica: O livro fala de pessoas mortas que não se podem defender
Não ataco ninguém morto. Relato contactos que tive com pessoas que já faleceram, com a mesma preocupação de verdade que tive em relação aos vivos. Não fiz nenhuma distinção entre vivos e mortos, que não faria sentido. A verdade tanto se aplica aos vivos como aos mortos. E este livro procurou respeitar escrupulosamente a verdade. Se eu tivesse memórias de conversas com Salazar ou Sá Carneiro não as deveria publicar?
Deixando as críticas genéricas e passando a críticas diretas envolvendo pessoas, há sobretudo três coisas que são constantemente referidas:
1. Não deveria ter incluído uma frase de Miguel Portas sobre Paulo Portas
É claro que eu poderia ter contornado a questão dizendo «um familiar» e não referir nomes. Mas quis que este livro tivesse uma marca forte de realismo. Isso dá-lhe credibilidade. Dizer as datas, referir os locais, chamar as pessoas pelos nomes… Essa frase de Miguel Portas é muito importante, pois mostra que Paulo Portas ponderou renunciar a uma carreira política por razões da sua vida particular. Saber que Miguel Portas disse «o meu irmão nunca será líder do CDS» por isto e por aquilo, é politicamente muito relevante para a biografia de P.P.
2. Não deveria incluir o parágrafo sobre a jornalista Fernanda Câncio
A jornalista Fernanda Câncio foi uma pessoa muito próxima do primeiro-ministro José Sócrates e que também fará parte da sua biografia. Esse período da governação de Sócrates foi, a partir de certa altura, marcado por uma grande leviandade de comportamentos, quer na esfera privada quer na esfera pública. E esse flash sobre F.C. é ilustrativo da sua personalidade. Havia muitos outros da mesma natureza, mas escolhi este. E não percebo a indignação que gerou. Uma pessoa que tem um comportamento livre, não convencional, deve irritar-se por isso ser dito? Se eu praticar nudismo vou indignar-me por alguém dizer que ando nu? E note-se que, nesse curto parágrafo, me limito a descrever a situação, sem fazer sobre ela qualquer juízo.
3. Não deveria falar de Margarida Marante
Este é um caso à parte. Enquanto os outros 41 protagonistas falaram comigo no âmbito de uma relação profissional, M.M. falou comigo como amiga. O que torna esta situação diferente. Mas este capítulo tem sido interpretado exatamente ao contrário do que me levou a incluí-lo no livro. O que pensei foi: tenho aqui um legado, sou depositário de testemunhos de uma pessoa desaparecida num momento desesperado da sua vida e tenho obrigação de divulgar essa herança. É a sua defesa, de certo modo. E pode constituir um alerta para muitas mulheres perceberem como certas decisões erradas na vida as podem conduzir ao precipício.
A linguagem que cada um de nós usa é reveladora do seu nível e natureza. No livro, procurei usar uma linguagem correta, embora crua e despojada, como convém a este tipo de livros. Mas o nível de linguagem dos meus críticos desceu a abismos raramente vistos. A crítica ao livro foi substituída pelo insulto grosseiro ao autor. Com isso, porém, só conseguiram aumentar a visibilidade do livro e torná-lo um best seller. Foi a melhor campanha de publicidade que o livro poderia ter tido. Nem o maior génio do marketing teria imaginado melhor…
Assim, paradoxalmente, os que pretenderam silenciar-me acabaram por me ampliar a voz. Os que gostariam de queimar o livro acabaram por projetá-lo para os tops, multiplicando as edições.
E o escândalo, constrangendo-me, acabou por ser bom porque chamou a atenção para um livro importante. Podem discutir-se três ou quatro coisas, eu próprio aqui e ali tive dúvidas, mas o essencial é a liberdade com que foi escrito e que pode constituir um exemplo.
Num país pequenino, amarrado a convencionalismos, carregado de invejas, onde as pessoas que se dizem mais livres afinal são cheias de preconceitos, esta «saraivada no charco», como lhe chamou o meu editor, pode abrir novos caminhos. Ela desafiou o establishment e revelou um Portugal repleto de candidatos a censores, de falsos moralistas, de medíocres arvorados em guardiões da moral, de fariseus, de jornalistas tolhidos por compromissos. A liberdade assusta – e este livro assustou muito porque respira liberdade.
Mas houve uma coisa que, talvez mais do que qualquer outra, contribuiu para o rejeição violenta que o livro provocou em certos meios: ele acaba por revelar uma elite que não gostou de se ver ao espelho. A elite política e jornalística portuguesa viu-se ao espelho nas páginas do livro e não gostou do que viu.
Carlos Rodrigues, no Correio da Manhã, escreveu que este livro lhe recordava Os Maias. Enquanto Eça retratou a burguesia do seu tempo através da ficção, este livro retrataria a atual classe dominante através do manuseamento da realidade. Agradeço o paralelo, que me desvanece, mas o livro não o merece. De qualquer modo, percebo que Eu e os Políticos seja visto como um fresco da nossa elite pós-25 de Abril.
E o facto de o livro ser sereno e objetivo irritá-la-á ainda mais. Nele não insulto ninguém, não chamo nomes a ninguém, quase me limito a descrever situações que vivi, não as comentando ou fazendo-o com sobriedade. Assim, o ‘mal’ que muita gente viu no livro estará afinal na realidade que ele retrata.
Pelo que poderá dizer-se que, num efeito de boomerang, as críticas mais violentas ao livro acabaram por desabar sobre quem as fez.