Tiago Moreira de Sá: “Trump só será imprevisível se for levado à letra”

Académico duvida que, uma vez eleito, o candidato republicano opte por Putin, em detrimento dos aliados históricos. «A ordem internacional não sobreviveria», garante.

Partimos do pressuposto que Donald Trump vai derrotar Hillary Clinton, nas próximas eleições presidenciais nos EUA e desafiámos Tiago Moreira de Sá – Doutorado em História Moderna e Contemporânea, e Professor auxiliar do Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa  – a refletir sobre o que isso pode representar, em termos da estratégia da política externa norte-americana a ser seguida pelo candidato republicano.

A secção do programa eleitoral de Donald Trump, reservado à ‘Política Externa’, começa com a seguinte frase: «Paz através da força será o centro da nossa política externa». Mais à frente vem referido que a sua administração vai «prosseguir operações e coligações militares agressivas para esmagar e destruir o Estado Islâmico».  Este tipo de terminologia pode indicar que vamos ter uma intervenção militar, nos próximos tempos? 

Daquilo que percebemos, olhando para o texto da candidatura de Trump, é que nos é apresentada uma proposta neo-isolacionista, unilateral, nacionalista, protecionista, contra as alianças permanentes, contra as organizações internacionais, contra o direito internacional e contra tudo o que tem a ver com a limitação da capacidade de exercício do poder livre por parte dos EUA.  Neste sentido, não podemos ser tão taxativos. Podemos, sim, dizer que, apesar da proposta ser isolacionista, muito dificilmente os EUA podem voltar a sê-lo . Em primeiro lugar, porque são a maior potência mundial e as grandes potências definem-se por ter grandes interesses à escala mundial e  isso implica forte envolvimento no exterior. Em segundo lugar, porque Trump tem uma visão de excecionalismo americano proselitista, ou seja, quer convencer os outros dos seus valores e isso implica  um envolvimento grande externamente. Por outro lado, a ideia de grandeza, defendida por Trump – «fazer a América outra vez grande» – só pode ser atingida através de um grande triunfo fora de portas, nomeadamente através da vitória na guerra. E há que contar com a opinião pública dos EUA, que não quer ouvir falar de mais um envolvimento militar no exterior.

Mas sendo Trump eleito, não significa que essa opinião pública se revê nesse envolvimento?

Não, porque a sua proposta principal é isolacionista e defende, acima de tudo, que o que interessa é arrumar a casa, não o mundo.

Aqui na Europa temos a ideia de que a política externa de Trump será totalmente imprevisível.

É imprevisível, se tomarmos à letra o que ele diz. E pode ter consequências catastróficas. Basta pensar no caso dos compromissos norte-americanos no âmbito da NATO, nomeadamente na Europa de Leste, sobre os quais Trump disse que os EUA não garantem que vão em defesa dos seus aliados – uma violação grosseira dos tratados – se estes não contribuírem mais para o orçamento. Mais do que a política externa imprevisível, as consequências é que podem ser completamente imprevisíveis. No caso da Europa de Leste, Trump estaria a dar carta branca à Rússia para rever as suas fronteiras, começando pelo leste da Ucrânia.

Tendo em conta o atual clima de tensão entre os EUA e a Rússia, uma vitória de Trump não poderia levantar, num primeiro momento, essa pressão entre duas potências, tendo em conta que já o elogiou publicamente? 

Os EUA vão reconhecer a anexação da Crimeia? Vão reconhecer a operação militar russa em Donbass? Nunca vão reconhecer que é possível alterar fronteiras terrestres pela força. A ordem internacional não poderia sobreviver a isso. George W. Bush também já disse «que olhou para os olhos do Putin e lhe viu a alma» (risos). Portanto Trump não é o primeiro. Enquanto a Rússia for revisionista, os EUA não podem ter uma relação desanuviada com ela, apenas entendimentos em assuntos específicos.

Quem vão ser, então, os aliados da administração Trump?

Os aliados terão de ser os aliados históricos – a União Europeia, o Japão, a Coreia do Sul, as Filipinas, a Tailânda, Israel, a Turquia, a Arábia Saudita. Não é por acaso que são aliados há mais de 70 anos. É do interesse dos EUA trabalhar com aliados confiáveis. E se Donald Trump vencer, estes não poderão passar o tempo a demonizá-lo, terão de arranjar maneira de saber lidar com ele, no quadro de referência que vem desde a II Guerra Mundial. Uma coisa é a campanha, outra é o poder. O resto é uma ficção, uma potência de status quo, como os EUA, que criou a ordem internacional, depois da Guerra Fria, não pode ter como aliado uma potência revisionista como é, por exemplo, a Rússia. Podem e devem procurar entendimentos em assuntos pontuais: a proliferação nuclear; a questão do Afeganistão; a questão da Síria – que nunca pode passar por manter Assad -, mas uma aliança entre uma potência de status quo e uma potência revisionista é uma impossibilidade histórico-teórica nas relações internacionais.

Trump é um candidato fora do comum, ou já houve, na história dos EUA, algum ex-presidente ou ex-candidato com uma postura de imprevisibilidade semelhante, pelo menos em termos de promessas?

Houve alguns, mas mal-sucedidos, como Barry Goldwater, nos anos 60. Mas esse era um conservador radical, Trump é populista. Teve algumas posições que poderiam resultar em imprevisibilidade, ainda por cima durante a Guerra Fria. Há quem compare, ainda assim, Trump com Andrew Jackson, mas eram tempos diferentes, no século XIX os EUA não eram uma potência mundial. Acho, fundamentalmente, que Trump é ele próprio, não é fácil de comparar seja com quem for.

Donald Trump também refere no programa que antes da Administração Obama-Clinton, a «Líbia estava estável», a «Síria sob controlo» e o «Iraque a viver uma redução da violência». E critica as estratégias de «construção de nação» e «mudança de regime» seguida por aqueles. Podemos refletir sobre a possibilidade de Trump preferir, por exemplo, uma Síria com Assad, mas estável, a uma outra qualquer solução governativa que englobe rebeldes sírios, atualmente apoiados pelo Ocidente?

O que Trump diz sobre a Administração Obama-Clinton é falso. Nunca houve uma situação de  «mudança de regime» nos seus mandatos. Pelo contrário, herdaram da administração de Geoge W. Bush, dois problemas que não criaram: Iraque e Afeganistão. No caso da Líbia, os EUA não se envolveram na primeira linha…

Posto de uma forma muito simples: é totalmente descabido prever um acordo Trump-Assad-Putin, para a Síria, tendo em conta que já mostrou simpatia pelo presidente russo e parece preferir uma Síria estável, independentemente de quem a liderar? 

Não consigo prever essa hipótese. Mas a acontecer seria um erro colossal e teria consequências complicadas no quadro da ordem internacional. Um acordo dessa natureza seria defender que não faz mal passar linhas vermelhas, não faz mais usar armas químicas contra a própria população e não faz mal violar todos os princípios das relações internacionais. 

Trump também diz que quer «derrotar a ideologia radical islâmica terrorista como fizemos [EUA] para vencer a Guerra Fria». É possível encontrar algum paralelo entre os dois momentos históricos, nem que seja em termos psicológicos?

Não. A Guerra Fria foi um confronto direto entre dois Estados. E na altura havia um adversário ideológico muito bem definido, universalista, com a missão de derrotar o liberalismo. E a Guerra Fria não foi ganha pelos EUA, foi um suicídio da URSS, ao tentar reformar-se. Tocqueville já dizia, «o momento mais perigoso para um mau regime é o momento em que se tenta reformar». Não há paralelo possível. A Indonésia, por exemplo, é um país islâmico e um do grandes aliados dos EUA. A Arábia Saudita, a mesma coisa. A ideologia radical islâmica terrorista é um grupo ultraminoritário do islão sunita árabe, que não representam o Islão, nem em número, nem em ideologia.