A traiçoeira batalha pelo fim do califado

A vitória contra o Estado Islâmico em Mossul pode ser apenas uma questão de tempo. O mais difícil vem depois

A maior e mais complexa batalha em solo iraquiano desde o fim da invasão americana começou ao luar da madrugada de ontem, no momento em que o primeiro-ministro iraquiano anunciou ao país que os milhares de combatentes instalados há meses nos arredores de Mossul tinham enfim luz verde para se lançarem na reconquista da última e maior cidade que o grupo Estado Islâmico controla no país. “Encontrar-nos-emos em breve no centro de Mossul para celebrar a vossa libertação e salvação”, disse Haidar al-Abadi na televisão, fardado como os generais que tinha a seu lado.

Abadi anunciou a campanha de libertação de Mossul como antes fez para cidades como Tikrit e Falluja. Mas nenhuma dessas operações se compara com a que se iniciou esta semana. De um lado estão cerca de 30 mil militares e paramilitares iraquianos, de tribos, confissões e etnias diferentes – e rivais, em muitos casos. Do outro estão entre quatro a oito mil militantes do Estado Islâmico, enfraquecidos pelos bombardeamentos dos últimos meses, mas conscientes de que uma derrota em Mossul quase equivale à morte da organização no Iraque.

A vitória sobre o Estado Islâmico em Mossul parece apenas uma questão de tempo. A mesma população que há dois anos abriu os braços ao grupo sunita contesta hoje o seu domínio: só este mês, aliás, dezenas de pessoas foram executadas por suspeitas de que estivessem a preparar um golpe. O governo iraquiano, por seu lado, hoje sem ministros da Defesa e Finanças e próximo da paralisia, procura também alguma margem de manobra. E em Bagdade quer–se recuperar parte do orgulho nacional perdido há dois anos, quando Mossul caiu para centenas de militantes islamitas, ainda que do outro lado estivessem milhares de milhões de dólares em equipamento e várias vezes o número de homens.

“Eles sabem que são homens mortos”, diz David Petraeus, ex–general, antigo diretor da CIA e o homem que desenhou o mapa para a reconciliação iraquiana – um projeto que Washington foi gradualmente cortando, abrindo a porta para muitas das tensões religiosas que criaram terreno fértil para a explosão do Estado Islâmico. O mais difícil, argumenta Petraeus, vem depois das operações em Mossul. O executivo de Bagdade está prestes a partir-se, mas é de lá que tem de sair uma solução de governo representativa que cure as complicadas feridas étnicas. “Caso contrário”, explica, “estaremos a plantar as sementes para o Estado Islâmico 3.0.”

Decisões impossíveis
Pelo caminho está quase um milhão e meio de civis, uma enorme massa que em breve pode sobrecarregar os campos de deslocados que se vão montando nos arredores da cidade. Os grupos humanitários dizem ter aprendido com lições como a de Falluja, por exemplo, onde não se prepararam para a fuga súbita de milhares de pessoas, mas dizem que não têm meios para lidar com os cenários mais pessimistas. Há hoje tendas para 60 mil pessoas, embora a ONU prometa abrigos para 250 mil.

A campanha para a reconquista de Mossul pode demorar meses. Há muito por onde errar, sobretudo no que diz respeito a lutas sectárias entre combatentes no lado do governo. Apesar disso, o primeiro dia parecia correr como o planeado: cerca de quatro mil combatentes curdos posicionados no leste da cidade tomaram ontem mais de meia dúzia de aldeias, enfrentando pouco mais do que algumas vagas de atentados suicidas e disparos de morteiro.

O comando iraquiano quer primeiro conquistar as aldeias nos arredores de Mossul e gradualmente cercar o centro urbano, cortando as linhas de comunicação e abastecimento a norte. Esta primeira fase deve durar apenas alguns dias: os extremistas não têm muitos abrigos contra os bombardeamentos da coligação americana, nem uma grande rede urbana onde se escudar. O mais difícil virá depois, quando as forças iraquianas chegarem ao centro e tiverem de combater rua a rua, manobrar por entre vastas redes de explosivos improvisados, enfrentar posições jihadistas entrincheiradas, túneis subterrâneos e milhares de civis que, como no passado, serão usados como escudos humanos.

Ninguém espera uma campanha limpa em Mossul. Há grupos humanitários que esperam dezenas ou centenas de mortes entre civis. O governo iraquiano, aliás, lançou milhares de panfletos sobre a cidade no domingo para tentar impedi-lo, dizendo à população que coloque fita adesiva nos vidros em forma de xis para evitar estilhaços, que não façam movimentos súbitos quando as tropas entrarem na cidade e que digam às crianças que o som das explosões são trovões. Aos homens, sugeriu que combatessem os jihadistas.

Mas a verdade é que a população de Mossul tem de tomar “decisões impossíveis”, como explicava ontem Alun McDonald, porta-voz da Save the Children. “Se continuarem na cidade, arriscam-se a morrer no fogo cruzado, a serem bombardeados ou então a ficarem presos, sem ajuda. Se tentarem fugir, arriscam-se a ser abatidos por atiradores furtivos ou a pisar uma mina fora da cidade”, disse à Al-Jazira.