Em tempo de guerra não se limpam armas. Mas também não há pão, nem café, nem nada. Foi conscientes disto que, na II Guerra Mundial, alguns proprietários de cafés em Nápoles, no Sul de Itália, criaram o Caffé Sospeso, ou Café Suspenso. Uma iniciativa que permitia a um cliente deixar um café pago para ser bebido por alguém que se seguisse e que não tivesse dinheiro para o pagar. Depois de Nápoles veio Roma, e outras cidades italianas. E quando o Café Suspenso atravessou fronteiras rumo a França, ao café juntou-se a baguete. E depois a sopa, e outros tantos bens alimentares. O fulgor da retoma económica fez cair este hábito no esquecimento que, no entanto, a crise financeira de 2008 recuperou. Primeiro timidamente, depois despudoradamente, e um pouco por todo o mundo – inclusive em Portugal.
Ora, quem oferece café, pão e sopa, pode oferecer bilhetes de teatro, que é cliché a transbordar de verdade que as artes alimentam a alma. Foi isto que pensou Aida Tavares, diretora artística do São Luiz Teatro Municipal, ao criar o Bilhete Suspenso. “Numas sessões de trabalho de uma rede europeia que inclui teatros e festivais, descobri que Istambul tinha um bilhete suspenso para os jovens que não podem pagar o bilhete para o festival de teatro de Istambul, que é uma bienal. Fiquei muito comovida com a ideia e com muita vontade de trazer este projeto para Lisboa.”
De regresso a Portugal, Aida Tavares e a equipa do São Luiz arregaçaram as mangas, e chamaram algumas associações com as quais já colaboravam – os Albergues Nocturnos de Lisboa, a Associação Coração Amarelo, a Associação Gulliver, a Associação SOL, o Lar Jorbalán, a Fundação Luís António de Oliveira, a Casa de Abrigo da APAV e o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa – para serem parceiras desta iniciativa. Ao público basta dirigir-se à bilheteira do teatro e dizer: “Quero comprar um Bilhete Suspenso” e pagar 7 euros. O remanescente é pago pelo próprio São Luiz. “Depois nós, em função do número de bilhetes que temos e da programação, conversamos com as associações e vemos que espetáculos se adaptam melhor a cada associação”, explica Ainda Tavares.
Este projeto começou timidamente há um ano, em jeito de experiência. Mesmo sem divulgação já foram dados cerca de 100 bilhetes suspensos. Agora, com o anúncio oficial deste Bilhete Suspenso, a direção do São Luiz espera fazer crescer este número. “Queria, até ao final da temporada, ter 500 bilhetes, pois isso significa que permitimos a 500 pessoas destas associações virem ao teatro. E mais, este número permitiria que algumas pessoas viessem mais do que uma vez e assim criassem alguma relação com o espaço do teatro.”
Das 100 pessoas que já usufruíram destes bilhetes, Ainda Tavares sublinha a quantidade de cartas e emails a agradecer que têm recebido. “Muitas nunca tinham entrado num teatro. Também por isto sinto que temos de ter cuidado nas escolhas porque um espaço com tantos dourados e vermelhos pode criar relações difíceis e nós queremos desmistificar isso e queremos que as pessoas se sintam em casa no São Luiz.
O público como programador A questão da proximidade é algo muito importante para o São Luiz. “Um teatro como o nosso tem de ter um posicionamento diferenciado desse ponto de vista e por isso criámos um programa de acessibilidade que se tem vindo a alargar – com muito orgulho nosso”, explica a diretora artística do São Luiz. Este programa deu os primeiros passos com a criação, em 2007, de sessões em língua gestual portuguesa. Já este ano arrancaram as Sessões Descontraídas, “um projeto que convida a virem ver espetáculos pessoas que têm problemas como dificuldades de concentração, traumas, autismo. O que propomos aos criadores é que eles tenham consciência que, além do público normal, terão na plateia estas pessoas e portanto devem repensar o seu espetáculo para que seja mais inclusivo e descontraído. Isto implica que alguns espetáculos têm de ter o som mais baixo, outros têm de ter mais luz, noutros já tivemos de ter puffs fora da sala para o caso de acontecerem ataques de pânico.” Estes projetos de acessibilidade incluem ainda a iniciativa Vamos?, feita a pensar em pessoas em isolamento, este Bilhete Suspenso e a Áudio Descrição, que será implementada ainda nesta temporada.
Além de todas estas iniciativas, dá atualmente os primeiros passos um “projeto transversal a estas preocupações”: o Público Vai Ao Teatro. “Acho que é das coisas mais importantes que vamos fazer este ano. O Teatro da Meia Volta já tinha feito esta experiência no Porto. É um projeto de desenvolvimento de públicos que inclui três grupos: um de crianças do segundo ciclo de uma escola aqui próxima; um grupo de adultos muito misturado que tem desde enfermeiros, advogados, diretores de marketing e reformados, como um senhor de 87 anos que sempre amou o teatro; e um grupo de professores – no ativo e em formação. Este é um projeto que nos vai acompanhar nas próximas duas temporadas. Numa primeira temporada eles vêm ver espetáculos e fazem crítica de espetáculos, mas também workshops e conversas com os criadores. Vão ter uma relação permanente connosco e isso permitirá desenvolver uma relação com o São Luiz, que será a casa deles. No segundo ano, o que espero que aconteça, é que possamos discutir todos juntos a programação do teatro e inclusive dar-lhes um ciclo do teatro que serão eles a programar”.
No fundo criar as pessoas do teatro do futuro. E fazê-lo com base na proximidade, que Aida Tavares acredita ser fundamental para a eficácia. “Acho que, nos projetos artísticos, é importante percebermos a escala a que trabalhamos e qual o nosso posicionamento. Assumi a direção há um ano e meio e este é um dos eixos que acho que faz sentido trabalharmos. Porque a relação de proximidade é fundamental. Temos de pensar, juntos, qual é o papel de uma sala como o São Luiz. Às vezes, mais do que os meios, é importante haver essa vontade de fazer um caminho com as pessoas, ouvindo-as”.