Há várias coisas que um homem como Peter Watkins não suporta e talvez uma das piores seja o que diz ser o autoritarismo que impera na relação entre a televisão e o cinema e o público. Defende-o nos seus filmes, desde “Culloden”, de 1964, reconstrução de uma batalha do século XVIII contada pelos repórteres televisivos que ainda não existiam, e em praticamente tudo o que escreve: fê-lo numa carta enviada a John Lennon e Yoko Ono, voltou a fazê-lo noutra que enviou à direção do DocLisboa, forma de agradecimento pela retrospetiva integral que lhe é dedicada nesta 14.ª edição do festival, que começa hoje com a projeção do seu primeiro filme, na Cinemateca Portuguesa.
Há muito que Watkins, realizador de televisão e de cinema que chegou à BBC na década de 1960 para revolucionar o género documental, estava na lista de desejos de retrospetivas dos diretores do DocLisboa. Decisão que veio para esta edição e em altura mais que certa, explica-nos Cíntia Gil, diretora do festival de cinema documental que decorre em Lisboa até ao próximo dia 30. “Decidimos que íamos fazer a retrospetiva e depois apareceu o Brexit, uma coincidência que apesar de tudo acrescentou ainda mais atualidade à retrospetiva”.
A somar à projeção de todas as obras do polémico realizador britânico, será possível assistir a uma mesa redonda sobre a atualidade da sua obra. Em que não estará presente o próprio, estará o seu filho, Patrick Watkins, que acompanhou parte significante da sua produção. O que significa rever a obra de Watkins em 2016? “É sempre importante em cada presente olharmos para a História para percebermos onde estamos. Temos muito tendência a pensar que as novidades estão sempre a aparecer e não é assim tão verdade”, defende Cíntia Gil, que sublinha a importância de Watkins não só para o cinema europeu contemporâneo como para o cinema documental.
“Basta dizer que ele inventou o falso documentário, o docudrama, com metodologias de trabalho com não atores, que ganhou um Óscar com o seu filme ‘The War Game’, que foi um filme produzido pela BBC e depois banido da BBC. É um realizador suficientemente importante para uma retrospetiva mas pouco conhecido do público português, daí entendermos que fazia sentido esta retrospetiva.”
Culloden
O filme que esta noite abre a retrospetiva que o DocLisboa dedica à obra de Watkins é também o seu filme de estreia, feito para a BBC em 1964, em que o realizador relata a história da batalha de Culloden, ocorrida em 1746, entre as forças do governo britânico e os rebeldes jacobitas, com repórteres enviados ao local. Impossibilidade física, histórica, o que se quiser, “é como se tivéssemos repórteres em direto a entrevistarem soldados das duas frentes”, nota a diretora do festival sobre o que Peter Watkins fez nem “Culloden”: recorrer a uma linguagem que se crê objetiva para fazer uma espécie de documentário obviamente falso, “um dos nós fundamentais da obra de Watkins”.
Edvard Munch
Aquele que formalmente é considerado um dos filmes mais relevantes de Watkins centra-se na figura do pintor Edvard Munch e dos seus diários. Ponto de partida para a exploração da paisagem psicológica e do processo criativo do pintor norueguês num filme que o realizador aproveita para refletir também sobre o seu próprio processo. E a escolha da figura não é aleatória, “Edvard Munch” (1974) foi feito entre a Noruega e a Suécia, dois dos lugares onde Peter Watkins viveu depois de se ver obrigado a deixar o seu país, após “The War Game” (1965), produzido pela BBC, ter sido banido pela própria televisão pública briânica, e da má receção que teve no ano seguinte “Privilege”, o primeiro filme que fez fora da televisão.
La Commune
Em 2000, Watkins pôs um anúncio no “Figaro”, diário francês de centro direita, em que procurava não atores para uma recriação da Comuna de Paris. “Outro dos aspetos fundamentais da obra de Peter Watkins é o trabalho com não atores e os processos de criação coletiva”, diz Cíntia Gil, que recorda que para este que foi o seu último filme o realizador reuniu num armazém uma série de não atores, de esquerda e de direita, para uma reenactment ao vivo da Comuna de Paris, primeiro governo operário da história fundado em 1871 na capital francesa. Uma fusão entre o documentário, a reportagem, à semelhança do que já se tinha visto em “Culloden”, e a ficção.
Punishment Park
Foi nisso, num parque punitivo, que se transformaram os Estados Unidos durante a Guerra do Vietname, defende Watkins neste seu filme de 1971. Mais um falso documentário sobre uma equipa de reportagem que acompanha uma fileira de soldados que escolta um grupo de hippies e ativistas anti-sistema através do deserto. Viagem em que os soldados não tentam impedir os rebeldes de chegarem ao seu destino, mas se limitam a acompanhá-los. “É um filme de crítica à Guerra do Vietname, com esta ideia de que os EUA se transformam num parque punitivo para aqueles que não estão dentro da norma. Um tema que faz muito sentido repensar, olhando para a maneira como pensamos a segurança.”
The Gladiators
“The Gladiators” (“Gladiatorerna”, em sueco) passa-se algures num futuro em que as civilizações deixaram de existir exércitos e os vários governos exploram a agressividade e fomentam o nacionalismo patrocinando uma série de televisão sobre jogos de guerra entre equipas de diferentes países, com os meios de comunicação a serem usados como forma de demover o público da discordância e da resistência. Metáfora que serve a crítica constante do realizador aos meios de comunicação de massa e à televisão, discurso que se tornou mais recorrente desde que na década de 1960 o seu “The War Game” foi banido pela BBC.
The War Game
Poder-se-á dizer de “The War Game” que foi o título mais marcante da obra de Watkins, também aquele que lhe deu um Óscar que decidiu deixar o Reino Unido depois de ver o seu filme banido pela BBC, a estação onde trabalhava e que o tinha produzido com o intuito de o transmitir mas que o considerou demasiado violento para programa televisivo. “The War Game” é um docudrama, género inaugurado por Watkins, que traça o pior cenário possível de um pós-guerra nuclear numa típica cidade inglesa, que, sendo ficção, venceu o Óscar de Melhor Documentário em 1967, além de um BAFTA e do Prémio Especial em Veneza, no ano anterior.