A notícia da morte de Bhumibol Adulyadej, no dia 13 de outubro, deixou os mais de 65 milhões de tailandeses em estado de choque. Nos anos recentes, o velho monarca já tinha começado a apresentar problemas de saúde, mas o seu desaparecimento revelou-se um autêntico murro no estômago da população, que nos dias que se seguiram encheu as ruas da capital para chorar e prestar homenagem ao rei morto.
Na hora da morte, a figura de Adulyadej é tão consensual na Tailândia, que chega a confundir-se com a de um semideus, adorado e venerado por todos. De tal forma que o herdeiro, o príncipe Maha Vajiralongkorn, não se sentiu capaz de avançar já para a coroa e decidiu esperar um ano antes de subir ao trono, para assim permitir que a população sare das feridas e recupere do abalo.
Quem testemunhou o choro dos tailandeses na semana que passou, dificilmente acreditará que nem sempre foi assim. Mas quando um ainda muito jovem Bhumibol foi coroado rei, em 1950, era praticamente considerado como um estrangeiro na Tailândia. Mais, considerava-se ele próprio, um estrangeiro.
Um tailandês ausente
Adulyadej nasceu em 1927, em Cambridge, no estado norte-americano de Massachusetts e foi o filho mais novo do príncipe Mahidol de Songkhla. O pai era um rebelde da realeza tailandesa, que viveu grande parte da sua vida fora do país. Passou pelo Reino Unido e andou pela Alemanha, mas quando Bhumibol nasceu, encontrava-se em Boston, onde frequentava a Universidade de Harvard.
Após o nascimento do filho mais novo, a família decidiu regressar à Tailândia, mas a estadia em Banguecoque não durou muito. Mahidol morreu e poucos anos depois um golpe de Estado no país obrigou a família de Bhumibol a remeter-se à clandestinidade na Suíça, com medo de represálias por parte dos líderes da mais recente república constitucional, que abolira a monarquia absoluta.
Em 1935, o ainda rei Prajadhipok abdicou da coroa e o irmão mais velho de Bhumibol, Ananda, foi proclamado sucessor. Mas o receio continuava a sobrepor-se à vontade de regressar e a família decidiu permanecer em Lausane, até ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Tal como se temia, o segundo regresso à Tailândia voltou a ser sangrento para Bhumibol e os seus familiares. Seis meses depois da chegada, Ananda foi baleado na cabeça, no Palácio Real de Banguecoque, em circunstâncias pouco claras. Enquanto o país continuava mergulhado num caos político, cresceram os rumores sobre um possível regicídio, levado a cabo pelo próprio Bhumibol, uma vez que era dele o nome que se seguia na linha sucessória.
Receoso pela sua segurança, o então herdeiro voltou para a Suíça, sob o pretexto de terminar os seus estudos, em Ciência Política e Direito. Em Lausane gozou de mais uns anos de liberdade, durante os quais se dedicou àquilo que mais gostava de fazer: pintura, fotografia, jazz – tocava e compunha canções no saxofone – e escrita. Pelo meio conheceu a sua futura mulher, filha do embaixador tailandês na Suíça, e cometeu alguns excessos, como um acidente de carro que lhe levou um olho.
Quatro anos se passaram e percebeu que era tempo de voltar à Tailândia, para ser coroado. Em 1950 deixou para trás a boa vida europeia e partiu, relutantemente, para não mais voltar.
A Banguecoque chegou, então, um jovem de 18 anos, nascido nos EUA e educado na Suíça, que desconhecia as tradições tailandesas, não tinha qualquer ligação sentimental com o país e mal arranhava a língua local. A esse ‘estrangeiro’ era-lhe oferecida, pelo sangue, a tarefa de representar uma casa real em decadência, mas para a qual mais de 60 milhões de pessoas ainda olhava com veneração. Contra todas as expectativas, um reinado que prometia pouco durou uma vida.
Reinar num país atribulado
Resumir um reinado de 70 anos em poucos parágrafos será sempre um exercício demasiado supérfluo. O tempo de Bhumibol Adulyadej no trono foi, naturalmente, marcado por altos e baixos, num país em constantes tumultos políticos e onde o autoritarismo militar foi figura presente durante várias décadas. Mas o jovem monarca, ciente dos poderes limitados da sua casa, encontrou rapidamente os espaços onde podia fazer a diferença e, com o passar dos anos, amadureceu a sua posição junto de uma população que, inicialmente, desconfiou da sua figura e do seu perfil.
Politicamente isolado internamente, esteve perto de ser afastado do poder logo em 1952, depois de ter rejeitado oferecer mais poderes aos militares, através da ratificação de uma nova constituição.
O primeiro grande momento de Bhumibol aconteceu, no entanto, em 1973, durante os violentos confrontos, nas ruas de Banguecoque, entre estudantes pró-democracia e os soldados do regime ditatorial do General Kittikachorn. Num gesto de ousadia, o rei ordenou a abertura das portas do seu palácio para acolher os jovens, numa altura em que o exército começou a disparar sobre a multidão, numa clara afronta ao poder reinante.
Na década seguinte, evitou um golpe de Estado – contam-se, pelo menos, 16 casos de usurpação do poder ou tentativa do mesmo, durante o seu reinado –, contra o primeiro-ministro tailandês, e convenceu os soldados revoltosos a lutarem pelo seu monarca, ele próprio, ao invés de apoiarem os cabecilhas da rebelião.
Bhumibol não conseguiu impedir, sublinhe-se, todas as investidas contra a liderança política no país. Umas vezes porque não conseguiu, outras porque não quis meter-se. Mas as novas caras dos sucessivos regimes autoritários buscaram, na maioria dos casos, a sua anuência ou bênção, ainda que não contassem com ele para governar.
Um líder consensual
O ano de 1992 foi o da consagração da personagem de Adulyadej como líder alternativo na Tailândia. Após nova tentativa de assalto ao poder, o rei obrigou os dois generais envolvidos na trama, a ajoelharem-se perante ele e prestarem-lhe vassalagem, em frente às câmaras de televisão, num momento marcante da sua obra política.
A distinção, em 2006, do então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, com o “Prémio Desenvolvimento Humano” confirmou uma vida política de grande dignidade, manchada, porventura, pela não condenação, de forma mais veemente, dos abusos levados a cabo pelos vários regimes militares, contra a população.
No dia 13 deste mês e depois de vários problemas de saúde, o monarca deixou os tailandeses, aos 88 anos, deixando o país mergulhado na incerteza e em risco de voltar a derrapar para a desordem, tal era o seu papel unificador, numa sociedade assente em tão frágeis laços políticos.
O seu filho e sucessor, o príncipe Vajiralongkorn, de 64 anos, está longe de ser uma figura querida pelos tailandeses e tem, inclusivamente, fama de excêntrico. Em 2007 foi divulgado um vídeo, gravado no palácio, onde aparece com a sua a terceira mulher, nua, a oferecer um bolo de aniversário ao animal de estimação do casal, um cão que até já foi agraciado com uma distinção militar. A pressão de ter de suceder a uma figura tão marcante da história da Tailândia como foi Adulyadej, levou o herdeiro a adiar a sua própria coroação por um ano, com a justificação de querer dar tempo aos tailandeses para chorarem a morte do pai.
Se dúvidas houvesse quanto à avaliação, da população, ao reinado de Bhumibol, estas foram totalmente dissipadas pelo clamor que se testemunhou nas ruas da capital, nos últimos dias: O príncipe estrangeiro foi mesmo promovido à categoria dos semideuses.