Terminou o marasmo político espanhol. Ou, pelo menos, um seu episódio. Os socialistas reuniram ontem e decidiram permitir a Mariano Rajoy e ao seu Partido Popular formar um governo minoritário já no próximo fim de semana. Passados mais de trezentos dias sem um executivo de pleno poder e depois de duas eleições inconclusivas, Espanha terá novamente governo e uma vez mais Mariano Rajoy como seu presidente. Não haverá terceiras eleições. Sem maiorias parlamentares, porém, tão pouco há solução duradoura.
A decisão de desenlaçar o nó espanhol foi tomada ontem no Comité Federal do PSOE. Reunidos no mesmo lugar onde no início do mês a ala dos barões se amotinou contra Pedro Sánchez e o afastou do cargo de secretário-geral, 139 dirigentes socialistas venceram outros 96 e votaram a favor daquilo que nos últimos dias vem sendo apresentado como uma espécie de “mal menor”: indicar à bancada que se abstenha no voto da investidura do governo popular, viabilizá-lo e – ainda mais importante – evitar o desastre eleitoral que para o PSOE seria ir a umas terceiras eleições.
“Ninguém tem direito a forçar os cidadãos a votar uma terceira vez apenas porque das duas primeiras o voto não cumpriu as suas expectativas”, lia-se no documento que os dirigentes socialistas votaram ontem, devolvendo enfim o partido à linha preferida dos barões, hoje liderada pela poderosa alcaide da Andaluzia, Susana Díaz, a favorita na corrida pela liderança do PSOE. “Todos os caminhos são maus”, admitia ontem Díaz, em Madrid. “Estamos numa situação difícil por causa dos nossos próprios erros”, sentenciava, ainda antes da votação.
Fratura Há semanas que o PSOE se vem orientando para a abstenção. É o que os altos quadros do partido defendem mais ou menos abertamente desde as segundas eleições de junho, em que quase foram ultrapassados pela aliança entre o Podemos e o Izquierda Unida. Pedro Sánchez resistiu o quanto pode, mas acabou afastado à força quando se tornou evidente que estava mais interessado em negociar com o Podemos do que em obedecer aos barões alarmados pela ascensão do partido de Pablo Iglesias, que pode beneficiar mais do que qualquer outro da abstenção socialista. Na última semana, o braço andaluz do PSOE, muito mais forte e numeroso do que os restantes, recomendou abertamente a abstenção, praticamente decidindo o voto de ontem.
Mas a decisão do Comité Federal, longe de sarar as divisões internas entre os socialistas espanhóis, pode acabar por agravá-las. Os socialistas catalães anunciaram ontem que vão manter o “não” a Rajoy e não é líquido que toda a bancada parlamentar obedeça às indicações da liderança – teoricamente existe disciplina de voto, mas num partido em guerra civil de pouco servem os estatutos. Os 96 votos contrários de ontem, aliás, mostram que existe fôlego que baste na linha de Sánchez para travar um conflito interno, para o qual não há solução evidente. Sánchez, afinal de contas, foi o primeiro secretário-geral a ser eleito diretamente pelas bases, que se queixam de que o partido lhes foi usurpado pelos barões. “Chegará em breve o momento de a militância poder recuperar e reconstruir o seu PSOE”, escreveu ontem Sánchez no Twitter.
Incerteza Felipe VI reúne-se hoje e amanhã com os líderes dos partidos e entregará a Rajoy a responsabilidade de formar governo. A confirmar-se o plano, o presidente do PP vai perder a primeira votação do seu governo minoritário, onde se exige maioria absoluta. Vencerá à segunda com maioria simples, provavelmente domingo, contando que pelo menos 11 deputados socialistas se abstenham ou faltem.
A partir desse momento tudo se complica outra vez. O PP não tem aliados naturais no Parlamento para além dos escassos Ciudadanos e não se adivinha vida fácil para Rajoy, que tem de aprovar um orçamento difícil e baixar o défice orçamental para os limites exigidos pela Comissão Europeia. Se é verdade que a economia espanhola parece ter beneficiado com o vazio de poder – espera-se que cresça na ordem dos 3,2% este ano, enquanto o desemprego baixa –, o mesmo não aconteceu com o défice, que engordou para os 3,6% do PIB.
A escapatória, diz-se pelos corredores dos populares, segundo o portal do “El Español”, tem de passar obrigatoriamente por uma aliança informal com os socialistas. Mas aqui a grande dúvida será perceber se por essa altura o PSOE não estará demasiado consumido em lutas internas para atender aos pedidos de um Mariano Rajoy que a sua base eleitoral despreza. “É a crise mais grave que alguma vez vivemos”, dizia ontem Antón Alfonsín, um dos militantes socialistas que protestava às portas da sede do partido, onde algumas dezenas de pessoas insultaram durante a manhã os barões que afastaram Sánchez e viabilizaram um novo governo popular. “Longe de resolvermos a crise este domingo, não fizemos mais do que a começar.”
Os analistas concordam. Do lado de lá do incêndio interno dos socialistas está um Podemos visivelmente exultante. O partido de Pablo Iglesias pode ter os seus próprios desafios pela frente – perdeu quase um milhão de votos nas segundas eleições, sofreu nas autárquicas e tem uma miríade de disputas ideológicas por resolver –, mas o que é certo é que a autoimolação do PSOE abre portas para uma sangria inédita de eleitores para o Podemos. O seu argumento contra o regime bipartidário que saiu da Transição de 1978, aliás, só ganha oxigénio com a abstenção socialista. “Hoje constata-se o fim do rotativismo como sistema de partidos”, escreveu Pablo Iglesias no Twitter. “Nasce uma grande coligação que nos terá por diante como alternativa.”