O funeral que o infante santo não teve

Há cem anos que os historiadores debatem o significado dos ‘Painéis de S. Vicente’. Afinal, as tábuas de Nuno Gonçalves podem representar uma cerimónia fúnebre de homenagem ao Infante D. Fernando, morto em Fez em 1443 e cujo corpo só foi recuperado 30 anos depois. A tese é aqui defendida vigorosamente por um universitário que…

O Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) redispôs há poucas semanas a sua coleção de pintura portuguesa, aproveitando a oportunidade para expor os Painéis de S. Vicente em posição de maior destaque.

No site do museu, a nota explicativa da pintura inclui as seguintes linhas: «Embora permaneça problemático o pleno entendimento da intenção e significado da obra, crê-se que o autor das tábuas é o pintor régio de D. Afonso V, Nuno Gonçalves, e que estariam originalmente integradas no retábulo de São Vicente da capela-mor da Sé de Lisboa».

Já a ficha da obra no mesmo site identifica Nuno Gonçalves como autor, dando-o como ativo entre 1450 e 1491 e data o políptico para cerca de 1470.

No entanto, é ocultado ao visitante que, com toda a verosimilhança, o políptico está assinado por Nuno Gonçalves e datado com o ano de 1445. A inscrição, pintada em posição invertida no botim do jovem adolescente do Painel do Infante, foi objeto de leitura paleográfica pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) em dezembro de 2002, na sequência de um pedido coassinado por cerca de duas dezenas de personalidades destacadas da vida cultural e universitária portuguesa.

A data de 1445, dois anos posterior ao falecimento em cativeiro do infante D. Fernando, o Infante Santo, dá a chave iconográfica para a pintura, que representará, afinal, o funeral cristão desejado pelos confrades e contemporâneos para o corpo insepulto daquele infante, retido então nas muralhas de Fez.

O estudo da madeira sobre a qual o políptico foi pintado, empreendido em 2001 pelo professor Peter Klein, a pedido do Instituto Português de Conservação e Restauro, levou aquele especialista a escrever:

A análise dendrocronológica torna assim altamente improvável a datação deste último [o Políptico de S. Vicente de Fora] para os anos de 1460 ou de 1470.

Como explicar que factos tão relevantes para uma pintura que é um verdadeiro símbolo nacional sejam ocultados ao visitante do MNAA?

O caso, que acrescenta um episódio surpreendente à já centenária ‘Questão dos Painéis’, arrasta-se há década e meia, mas merece ser revisitado, pois os Portugueses têm direito a informação límpida e honesta sobre uma peça artística que se reveste para eles de valor transcendente.

 

Rememorando uma investigação

Nas linhas seguintes relatar-se-á sucintamente uma investigação empreendida há quase duas décadas e que esteve na origem do livro Os Painéis de Nuno Gonçalves (Jorge Filipe de Almeida, Maria Manuela Barroso de Albuquerque, Editorial Verbo, 2000). Mais fortuita e espontânea do que longamente amadurecida dentro de qualquer contexto institucional, a investigação merece alguma memória por ter proporcionado aos seus dois autores a felicidade intelectual de se terem informado em poucos meses sobre os dados essenciais da temática e de terem obtido resultados que serão, verosimilmente, para ela decisivos.

A investigação teve a sua origem numa visita casual a uma livraria antiquária de Lisboa, no mês de junho de 1998. Deparei-me então com o livro Os Painéis de São Vicente de Fora (Armando Vieira Santos, Neogravura, 1959) que me atraiu pela reprodução integral dos rostos pintados no políptico. As dezenas de imagens, organizadas pelo pintor Martins Barata, se bem que quase todas não coloridas, tiravam partido do grande formato do livro e impressionavam pela individualidade severa dos retratos. O texto providenciava uma introdução sóbria e de qualidade às interrogações que envolvem as famosas tábuas desde que estas foram redescobertas no final do século XIX.

Desconhecedor então das subtilezas do debate e do grau de acrimónia que desde há décadas o perturbava, encarei o políptico, prima facie, como um quadro histórico que figurava uma cena contemporânea dos retratados. A presença do infante D. Henrique (1394-1460), representado de chapeirão e aparentando a meia-idade, sem sequer estar pintado em primeiro plano, convenceu-me de imediato que este se encontrava ali acompanhado da família real portuguesa retratada em meados de Quatrocentos.

Facto relevante e portador de significado iconográfico, a figura do santo, duplicada nos dois painéis centrais, levantava uma questão delicada de protocolo: dos dois adultos em primeiro plano aos quais o santo se dirigia e privilegiava com o seu gesto, qual deles era a figura régia? A indumentária de adamascado verde com debruns dourados destacava pela sua riqueza o adulto com um só joelho em terra a quem o santo apresentava um livro aberto, no Painel do Infante. A proximidade de uma figura feminina com vestes de aparato e alta coifa e de um adolescente apontavam assim para a presença nesse painel do casal régio e do seu primogénito. Mas, como explicar então que no Painel do Arcebispo o santo privilegiasse outro adulto, também ele com um só joelho em terra, com a entrega de uma vara dourada, atributo simbólico de poder supremo?

Ora, José Saraiva defendera 1445 como ano de finalização do políptico e nesse ano o rei de Portugal, D. Afonso V (o adolescente na pintura), contava treze anos de idade. Sendo ele menor, estava o poder da regência nas mãos de seu tio, o infante D. Pedro (o adulto a quem a vara dourada era entregue). A lógica própria à tese defendida por José Saraiva no seu livro de 1925, Os Painéis do Infante Santo, tornava natural a representação póstuma de D. Duarte (o homem de adamascado verde) numa homenagem ao seu irmão D. Fernando, o mártir de Fez (que seria, afinal, o santo representado de dalmática). Límpida explicação para a ambiguidade na identificação da figura régia e para a dupla representação do santo no políptico! Entrevia-se assim uma via de abordagem promissora à análise da pintura.

A leitura de Os Filhos de D. João I, que comecei de imediato, possibilitou-me reavivar a memória sobre as contrariedades que, a partir de 1437 e por mais uma dúzia de anos, apartaram a ‘Ínclita Geração’ da felicidade e concórdia em que até então tinham vivido. Esses dramas familiares, que testaram a têmpera dos infantes de Avis, eram relatados com verve por Oliveira Martins, levando Eça de Queiroz, em carta dirigida aquele autor, a escrever: «O teu D. Pedro, o teu D. Duarte, são criações superiores. Eram assim? Se eram, bendita seja a tua arte de ressuscitar! Se não eram, honra à alma nobre que pôde inventar tais almas».

Desta forma, entrecortando amiúde a leitura das páginas de Oliveira Martins com a revisitação das veras-efígies daqueles príncipes nas veneráveis tábuas, fui-me embrenhando nas subtilezas da melindrosa ‘Questão dos Painéis’. Neste percurso intelectual fui acompanhado por Maria Manuela Barroso de Albuquerque, minha mãe, coautora de Os Painéis de Nuno Gonçalves.

 

Uma corda aos pés do santo

Das leituras sobre a temática dos Painéis e sobre a arte do século XV, empreendidas nas semanas imediatas, resultaram duas reflexões importantes. A primeira, de caráter geral, fora praticamente ignorada na bibliografia sobre o Políptico de S. Vicente de Fora: a auréola do santo foi figurada com raios abertos e aponta assim para a representação de um beato e não de um santo canonizado, o que levanta as maiores dificuldades à identificação de S. Vicente na pintura. A segunda reporta-se à passagem do Evangelho de S. João, discernível no livro aberto ostentado pelo santo e que é a perícope lida no Domingo do Pentecostes. Ora, este domingo ocorrera a 9 de junho de 1443, dia em que o cadáver nu do infante D. Fernando estivera suspenso de uma corda atada aos seus pés, nas muralhas de Fez. Reconhecendo como é rebuscada a explicação dada pela tese vicentina para a corda pintada aos pés do santo, no Painel do Arcebispo, foi-se insinuando no espírito dos autores a crescente convicção da veracidade da tese fernandina.

A hipótese da figuração de S. Vicente no políptico fora, desde há muito, sujeita a críticas pertinentes: é certo que o diácono é quase invariavelmente representado de dalmática, tal como nas tábuas; no entanto, distintamente do que se verifica nas mesmas, de cabeça descoberta e tonsurado, sendo as exceções muito raras e sempre fora da nossa escola de pintura. Contudo, a alusão vicentina é percetível no políptico e ela deve-se ao paralelo entre o destino do infante D. Fernando e o do diácono Vicente, santo patrono de Lisboa e da empresa militar em Marrocos. Nuno Gonçalves e os seus contemporâneos viam os mártires irmanados, a um milénio de distância, pelo falecimento em cativeiro, seguido da privação de sepultura condigna, por sanha de cruéis carcereiros de fé inimiga. Aliás, o paralelo continuou a ser intuído no decurso das últimas décadas, com vários autores no campo vicentino a aludirem, de forma mais ou menos explícita, à figura do Infante Santo.

Entretanto, foi conseguido o ajustamento na identificação plausível dos elementos principais da família real de Avis, todos eles reunidos em homenagem ao infante mártir, nos dois painéis centrais e no Painel dos Cavaleiros. O elo familiar dá uma coerência inédita a esta série de identificações, numa disposição que abarca duas gerações sucessivas e que, respeitando o protocolo, inclui desde D. Duarte, o responsável máximo pela expedição a Tânger, até ao conde de Arraiolos, o filho mais novo do duque de Bragança.

 

Pintura em contexto municipal

A ostensão em primeiro plano da relíquia nas mãos de um homem portador de uma toga vermelha, e não nas de um eclesiástico, a figuração do arcebispo e do cabido inseridos no último plano de um friso horizontal com dezenas de personagens, obviamente contemporâneas do pintor – eis todo um conjunto de evidências que tendiam a afastar o políptico de um contexto de catedral (quem não retém na memória a impressão de verticalidade transmitida pelos retábulos peninsulares antigos ainda in situ, onde, invariavelmente, são figuradas histórias sagradas da Bíblia?). Ocorreria antes aproximá-lo de um contexto municipal, apontando-lhe o templo fronteiro à Sé de Lisboa, mas de dimensões mais modestas, a Casa de Santo António, onde na centúria de Quatrocentos tinham assento os Paços da Câmara. Além disso, de fonte documental segura, sabia-se ter sido aquela Casa espaço de comemoração da memória do infante D. Fernando.

No dia 1 de novembro de 1998, quando a nossa investigação tinha já como adquiridos os pontos precedentes, a observação atenta de uma reprodução da tira dourada pintada no botim do adolescente foi abordada com algum ceticismo, no conhecimento de que várias leituras propostas no passado não eram convincentes. Poderiam aqueles arabescos encerrar alguma mensagem que tivesse eludido um século de investigações? Inesperadamente, ao ter sido ensaiada a inversão da tira, tornou-se evidente o imediato ganho na legibilidade de vários símbolos. O desconhecimento do uso paleográfico português de representar o numeral 45 pelos símbolos ‘R’ e ‘b’ atrasou em algumas horas a constatação surpreendente de que os controversos Painéis estavam assinados por Nuno Gonçalves e datados com o ano de 1445.

Compreensivelmente, a decisão de acrescentar um texto escrito à longa bibliografia sobre os Painéis ganhou uma maior premência junto dos autores. Desde esse mesmo momento, foi entrevisto pelos mesmos que o texto que viessem a publicar teria necessariamente reverberação. No entanto, assistiu-lhes a convicção de que o ceticismo da crítica, que seria perfeitamente justificável de início, se abateria face à evidência da inscrição. Engano dos autores! A mensagem silenciosa enviada por Nuno Gonçalves há mais de cinco séculos aportara incólume ao nosso conhecimento. Porém, tal como os anos imediatos à publicação do livro iriam demonstrar, o limo acumulado pela acrimónia do último século não tardaria a ser revolto e a turvar a limpidez de águas necessária à leitura da inscrição. Lamentavelmente, perdeu-se assim a oportunidade para dar algum sentido de fechamento à famigerada ‘Questão dos Painéis’.

 

O funeral cristão que faltava

Cerca de dois meses mais tarde, a leitura casual do apêndice de um livro sobre as Misericórdias permitiu levar bastante mais longe a ideia, defendida por José Saraiva, de que a pintura representava uma homenagem da Nação Portuguesa ao Infante Santo. No Compromisso da Misericórdia de Lisboa, um documento de 1498, na passagem que referia as obrigações fúnebres dos confrades, era descrita uma cena que se acordava de forma notável com a evidência pictórica. Agrupamento conjunto de leigos e de religiosos, objetos (tumba da confraria, cruz dos defuntos, ramais de contas) e atitudes (genuflexões e gestos de oração) concorriam para podermos apreender de novo o significado, afinal simples e intemporal, dos Painéis: o funeral cristão desejado para o infante mártir, cujo corpo permanecia naquele ano de 1445 como macabro despojo de guerra nas muralhas de Fez.

No decurso do mês de janeiro de 1999, a consulta de bibliografia sobre o fenómeno confraternal no final da Idade Média permitiu reconhecer a hipótese do políptico ser um retrato de confraria como verdadeira chave de abóbada para a tese fernandina. Além de explicar as evidências pictóricas atrás referidas – e muito naturalmente, pois as obrigações fúnebres, bem como a remissão dos cativos, eram essenciais àquelas associações –, a hipótese inseria-se no ambiente de afirmação municipal que tinha favorecido o florescimento de uma Arte Nova na Europa de então. Ocorre evocar o ditado medieval alemão «Stadluft macht frei» – o ar da cidade traz liberdade.

Este é o primeiro de três textos sobre os Painéis de Nuno Gonçalves

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