O Jovem Mágico. Onde está o mundo senão aqui?

A partir de hoje e até 20 de Novembro, o Teatro do Bairro põe em cena “uma máquina de passar vidro colorido”, num espetáculo que cria um diálogo interior com a obra poética de Mário Cesariny

Estamos a um mês dos dez anos da morte do poeta, aquele que ia dando alguns dias mais e outros menos pelo nome de Mário Cesariny de Vasconcelos… Sobre essas reticências alguns ainda o ouvirão insurgir-se: “Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?” Alguns que talvez ainda aguardem uma idade para nomes que não estes, nomes puros. É possível que a espera seja o mais doloroso, mas nem todos nela se arrumam por igual. E se “um pouco de certo modo por toda a parte/ há homens desmaiados ou simplesmente mortos”, outros sabem que “a cobardia responde à cobardia/ como a coragem responde à coragem”, e assim prosseguem “este eterno trabalho de dadores de sangue”. Um bom exemplo: esta noite. Das águas há muito chocas do Bairro Alto, mais para turistas do que para verdadeiros náufragos, mais para molhar o pé do que para grandes viagens ao fim da noite, parte um navio de espelhos a perscrutar o mar do fundo. A partir de textos de Cesariny, estreia hoje, às 21h30, no Teatro do Bairro, “O Jovem Mágico”.

É de esperar que o princípio do mundo e o fim se cruzem esta noite, e a voz pesada do amor de que todos falam mas que à maioria, na sua rareza mais brutal e nua, sempre choca, essa voz terá dez mil capitães e um mastro altíssimo, espelhado como convém, uma espécie de porta num palco que abre para os dois lados. A encenação é de António Pires, e é inseparável da construção de um fidelíssimo drama que abarca a “nobilíssima visão” do poeta. A radicalidade do homem inteiro aberto sobre a mesa como um mapa, só que em vez de um dedo a dizer que lhe dói aqui e acolá, as cenas descolam até ao mais puro devaneio e logo caem umas entre as outras,  numa progressão de tal maneira exigente que nos faz sentir sacudidos de todos os lados. 

A peça é um verdadeiro tour de force, e exige-nos não só os sentidos e a atenção, mas o corpo. É preciso saber apanhá-lo uma e outra vez do chão. O risco de uma dramaturgia que lida com palavras como “metal fundente”, palavras que “podem dar-nos morte violar-nos tirar/ do mais fundo de nós o mais útil segredo”, é a todo o momento sentirmo-nos incapazes de recuperar a tempo o fôlego. A peça tem a alma de um comboio, avança colocando os seus próprios trilhos, por entre uma sucessão de paisagens “extremamente à procura”, de tal modo que nos vertiginam.
“Vozes e ar pesado/ é tudo o que transporta” a dramaturgia assinada por António Pires e Hugo Mestre Amaro, mas logo a leitura abre uma série de planos, em vez de uma simples trama. O espetáculo surge como a esplendorosa projeção da tal “máquina de passar vidro colorido”. Tão para lá da homenagem, esta espantosa invocação do poeta foi conseguida, segundo explica Amaro, relacionando os poemas “como portas comunicantes”, edificando “o diálogo da obra de Cesariny consigo mesma”. Este “caleidoscópio gigante” funciona tão perfeita quanto aventurosamente na medida em que tudo o que há sobre o palco se sonha: o cenário, os atores tanto estendem as imagens, ou lhes dão corpo, voz e dança, como operam ao nível da linguagem. Estão antes e depois dos poemas, reformulando-se constantemente.  

A cenografia tem uma qualidade modular, constantemente manipulada, inspira e expira, como uma casa de bonecas da imaginação. Num sobe e desce, num atropelo e balbúrdia própria das mais povoadas solidões. (“Nós vivemos há muito nesta espécie de caverna bruxa/ alta pelo silêncio que nos veste/ real pela erosão de um sol peculiar que ilumina o recinto intermitentemente/ um sofá que não é para aqui chamado/ também podia servir de modelo à ampla descrição do fenómeno a luz/ que nos excede e emite nos liberta e sufoca”.)

Este espetáculo corresponde ao ideal de um “teatro coreográfico que recusa o naturalismo e o realismo, construindo um mundo e um tempo só possíveis em palco”, mas se nos deslumbra isso deve-se ao modo como a todo o momento assume riscos, não se limitando a gizar os contornos entre os quais as palavras de Cesariny possam ecoar. Há uma resposta ao impulso poético com a criação de quadros que procuram andar a par das palavras, corresponder à sua verticalidade com horizontes que vão além de meras transcrições visuais. Por isso, é justa a noção de “palimpsesto” para caracterizar este espetáculo que inventa uma natureza autónoma, “um Lugar” onde a escrita é obrigada a lidar com as consequências das suas criações e imagens, onde a liberdade é sujeita a uma pontuação, com a paisagem a ser povoada, onde a física impõe constrangimentos e, desses ecos que se arrastam, nascem novos esplendores.

Depois há a troca de correspondência entre as cintilantes nuances do poeta, a sua ironia arrasadora, a sua capacidade de magnificar e destruir-nos, e a grandiosidade expressiva que imprime o encenador, o modo dos atores lhe vestirem a pele diferentemente, serem suas vítimas e também, às vezes, o seu fantasma. Neste ponto, e se todos estamos muito certos da grande atriz que é Maria João Luís, primeiro é bom vê-la ali, mas depois, ocupando as suas posições é estarrecedor vê-la de facto, sentir-lhe o pulso, explicar-nos que não é tanto assim como julgamos, não é ser uma grande atriz mas ser essa consciência que, de cada gesto, arranca a nota menos óbvia. E sem nunca ler-nos este poema, nos vai lembrando: “Despe-te de verdades/ das grandes primeiro que das pequenas/ das tuas antes que de quaisquer outras/ abre uma cova e enterra-as/ a teu lado”.

O mundo tem raízes, céu e inferno aqui. Tem outras coisas pelo meio. Há uma visão da Arte (com maiúscula, necessariamente) que parece muito de outros tempos. Uma condição de revolta e luto irreconciliáveis com a ostentosa leviandade com que certas bestas radiantes concebem a cultura ao serviço de grosseiras ficções sobre as necessidades de um país, de um povo. 

Desta peça ninguém sai acompanhado. Mesmo que tenha chegado com amigos, sai-se a pingar, a zumbir por dentro de “palavras noturnas palavras gemidos/ palavras que nos sobem ilegíveis à boca”. É para maiores de 16, mas talvez seja mais indicada para adolescentes capazes de encontrar o mundo além de si como dentro, abrir um poço cheio de astros, melhor adolescentes certamente do que “uma certa quantidade de gente à procura/ de gente à procura duma certa quantidade”.