Sós, vulneráveis e desaparecidos

A Europa perdeu o rasto a mais de dez mil menores requerentes de asilo só no último ano. Os casos são tão difíceis e a atenção é tão marginal que não se sabe ao certo quantos estão a salvo e quantos caíram nas garras das redes de tráfico humano. Portugal está fora dos locais de…

Todos os dias desaparecem dezenas de crianças e adolescentes não europeus que chegam em busca de asilo ou de uma vida melhor no continente. Não trazem documentos, vêm sozinhos e raramente falam outra língua que não a sua. São quase todos largados por redes criminosas, que facilitam a entrada de barco pelos países europeus do sul e prometem não esquecer a cara de quem transportam: habitualmente há uma dívida astronómica que ainda tem de ser cobrada, der por onde der. Fogem da guerra, da perseguição, da fome e da pobreza. Alguns pelo seu próprio pé, outros enviados pelas famílias. São os mais vulneráveis dos vulneráveis nos trilhos europeus e a raiz de uma crise que tem tanto de dramática como de silenciosa. E para a qual ninguém parece ter solução imediata. Ou vontade de a encontrar.

Estas são as crianças e adolescentes não europeus que nos documentos vêm designados como migrantes menores não acompanhados. Os seus números são imperfeitos, costurados através de bases de dados nacionais, organizações não-governamentais e agências europeias de proteção de fronteiras, mas algumas estimativas sugerem que metade destes menores desaparece do radar a um dado momento do seu percurso europeu. Isto não quer dizer que tenham sido raptados ou levados contra a sua vontade. Na maior parte das vezes, aliás, fogem dos centros de acolhimento para seguir caminho para países mais ricos. Quando o fazem, os seus casos raramente são acompanhados pela polícia, que assume que o seu desaparecimento se deve ao facto de terem uma rota planeada e de a quererem cumprir longe do seu olhar.

Mas nem sempre é esse o caso. A Europol admite que as redes de tráfico humano europeias têm crescido ao aproveitar-se dos fluxos migratórios do últimos dois anos. A União Europeia, por sua vez, afirma que estas organizações cada vez mais escolhem os menores não acompanhados como o seu alvo favorito. Não se sabe ao certo quantas crianças e adolescentes desaparecidos no ano passado apareceram, mais tarde, com outro nome, num outro país da Europa, e quantos estão ainda desaparecidos. A Europol tem uma estimativa conservadora: há pelo menos dez mil jovens desaparecidos.

A polícia europeia suspeita que cinco mil estejam hoje em redes europeias de trabalho forçado ou prostituição e presume que os outros se mudaram para países diferentes. Mas esta continua a ser uma estimativa incompleta, com base apenas nos números que se conhecem de menores que entraram no espaço comunitário, que atravessaram fronteiras e que foram registados antes de saírem do radar. Muitos não passaram sequer por estes passos. Estes menores são esquivos e desconfiam tanto da polícia como dos centros de acolhimento. “Têm muita mobilidade e capacidade de escapar ao controlo das autoridades”, explica André Costa Jorge, diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados.

Do estigma e da falta de informação surge quase sempre a inação. Federica Toscano exalta-se ao falar deste tema nos gabinetes da Missing Children Europe em Bruxelas, onde trabalha unicamente com menores desaparecidos. “Os polícias dizem que não podem investigar estes desaparecimentos por várias razões: desde o facto de não haver material suficiente, falta de meios – ‘se começarmos a procurar estas crianças, não fazemos mais nada’ – e de não saberem o que fazer porque não estão preparados”, explica ao B.I. “Em alguns casos é cinismo, noutros casos é frustração de não poderem fazer mais. Do que nós discordamos é da premissa de que isto é normal. Não é normal!”

Da europa, nada de novo

Federica sente que a liderança europeia abandonou o tema do desaparecimento de menores não acompanhados. Ela e a sua organização defendem que há mecanismos que podem ser já ativados para encontrar pelo menos alguns destes jovens, mas que para isso seria necessária uma ordem europeia. Os parlamentos nacionais, já se sabe, têm agendas adversárias quando abordam temas ligados ao acolhimento de refugiados. Federica animou-se quando a Comissão Europeia publicou, no ano passado, a sua agenda europeia para as migrações. As crianças apareciam apenas duas vezes no texto – e uma delas em rodapé –, sim, mas sempre existia a promessa de construir uma política compreensiva sobre o seu acolhimento. “Pareceu-nos o reconhecimento do problema.” Mas tudo descambou há poucas semanas. “Tivemos várias reuniões com a Comissão e a própria comissária e há um mês recebemos a notícia de cure não haveria qualquer estratégia compreensiva para as crianças migrantes”, disse Federica. “Foi realmente mais um sinal de falta de vontade política. Foi realmente frustrante. Estávamos verdadeiramente satisfeitos com a Comissão e o trabalho que estava a ser feito. E depois, subitamente, dizem-nos que nem haverá um documento de trabalho. Há muito a fazer, mas precisamos pelo menos de ter as instituições do nosso lado. E ainda por cima quando temos por diante propostas claramente perturbadoras.”

Federica fala sobre as novas propostas para uma reforma do sistema de Dublin, que há anos regula a imigração europeia e que ruiu quase por completo. O sistema exige ainda que um requerente de asilo peça proteção no primeiro país de entrada na comunidade, algo que se tornou imediatamente insustentável no ano passado, quando centenas de milhares de pessoas inundaram a Grécia e Itália. Bruxelas prometeu chegar a uma solução que distribuísse o peso das migrações, mas em cima da mesa continua a ideia de que o asilo deve ser pedido no primeiro país de entrada, uma das principais razões pelas quais tantos menores escolhem fugir aos controlos da polícia e abandonar os seus centros de acolhimento. Muitos têm de fazer dinheiro para pagar as dívidas às redes de tráfico e por isso apontam caminho para a Alemanha. E os que não estão já sob a mão das redes, muitas vezes entram no seu jogo ao longo do caminho.

André Costa Jorge conta uma destas histórias ao B.I: “Conheci um rapaz costa-marfinense quando estive há uns meses em Marrocos. Estive a acompanhar um projeto que estávamos a desenvolver com jovens subsarianos perto da Líbia. Falei com ele. Tinha 18 ou 19 anos, mas estava lá há quatro. Contava que tinha sido espancado pela polícia e tinha sido roubado pelos guardas e pelos traficantes. Perguntei-lhe por que é que com tanto sofrimento não deixava aquilo, não regressava? Por causa da dívida. A própria família não entendia o que ele estava a passar. Para muitos jovens é o peso do sucesso, do bem-estar da família que ficou. Não podia regressar porque dizia que se o fizesse, a sua aldeia seria incendiada. Ele não transportava só o peso da sua existência. Era também responsável pelo limite da vida.”

Recolocação falhada

As falências europeias vão mais para além de Dublin. “É um cenário desastroso”, argumenta o eurodeputado Carlos Coelho, que acompanha os fluxos de refugiados e a crise das fronteiras internas que quase sucumbiram sob o seu peso. Num telefonema ao B.I. explicou como os centros de acolhimento gregos estão sobrelotados e que só este ano entraram mais 20 mil crianças e jovens não acompanhados em Itália, país de onde a Oxfam diz que 28 menores desaparecem todos os dias.

O_eurodeputado aponta armas ao projeto de recolocação de refugiados: o mesmo sistema de Bruxelas que pretendia distribuir 160 mil requerentes de asilo pela comunidade europeia e que, por agora, colocou apenas alguns milhares. O registo com menores não acompanhados é ainda mais alarmante: só 75 foram colocados até hoje. Em Bruxelas acredita-se agora numa segunda vida para a recolocação, mas Carlos Coelho tem dúvidas. “Daqui a três meses estaremos em condições para ver quem tem razão: se o meu ceticismo, que é mais realista, se o otimismo da Comissão.”

Carlos Coelho não é o único cético. Ana Maria Rodrigues trabalha com a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, onde tenta acelerar a colocação de menores não acompanhados desde a Grécia e Itália até Portugal. A burocracia e a complexidade do processo ainda não lhe permitiram fazê-lo. “Aquilo que me parece é que temos vindo a entrar numa espiral da qual não sabemos sair. Tenho uma perspetiva muito pessimista.”

Silenciosos e prestes a fugir

Portugal está fora dos centros de crise. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras explica que não há indícios de que as redes de tráfico de menores se estejam a voltar para território nacional, onde os requerentes de asilo chegam sobretudo por via aérea e de países africanos. Existe alguma pressão com o movimento secundário de quem já entrou em Schengen, sim, mas, por enquanto, não há razão para alarme. O Observatório de Tráfico de Seres Humanos diz algo semelhante: afirma que é possível que os novos fluxos deem fôlego a redes de tráfico em Portugal, que cá se aproveitam dos pedidos de asilo de menores, mas defende que, por enquanto, é apenas uma hipótese a ter em conta.

O desaparecimento de menores requerentes de asilo em Portugal não acontece ao mesmo ritmo de outros países europeus, mas também não é incomum. Este ano desapareceram já sete adolescentes do Centro de Acolhimento para Crianças Refugiadas, em Lisboa. Dora Estoura lida com estes casos. Quase nunca se ouve notícias de quem desaparece, com a exceção de quem liga de outro país, dizendo que está bem, que tem emprego, ou, como aconteceu com uma rapariga, dizendo que estava numa rede de tráfico sexual – em julho de 2014, o SEF eliminou uma célula que operava a partir de Portugal e que pode ter movimentado quase cem raparigas nigerianas para trabalho sexual noutros países europeus.

Dora conta que há pouco que se pode fazer para além de alertar as autoridades com a suspeita de que um menor se pode estar a preparar para fugir. O resto é revelar-lhe os seus direitos, tentar integrá-lo e fazer o melhor para evitar que fuja. O centro trabalha em regime aberto. O seu objetivo é integrar os requerentes de asilo no país, não restringir-lhes a liberdade. “Em alguns casos vêm já com ordens. Não falam, não criam laços com ninguém. Isolam-se. Passados alguns dias, desaparecem”, conta ao B.I. “É muito doloroso para nós, mas temos de agir como profissionais”.