Foi uma última aula a abarrotar de alunos, amigos e família. Dois ex-Presidentes da República na primeira fila – o irmão, Jorge Sampaio, e Ramalho Eanes – e caras conhecidas como Eduardo Barroso, António Barreto ou Manuel Alegre. Durante hora e meia, Daniel Sampaio falou de pé sobre o estrado de madeira do grande auditório da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, parando por vezes para beber água. Emocionando-se em alguns momentos.
No final, duas imagens resumiriam tudo: uma fotografia de mãos ligadas por cordéis. “Procurei ser fio entre pessoas.” E um quadro de Kandinsky, a obra “Several Circles” – um círculo negro rodeado de outros maiores e mais pequenos, todos diferentes, coloridos. “Não sou um círculo negro, mas quis que a partir de mim pudessem surgir pessoas que fizessem mais e melhor.”
Foi destas células vivas que saíram de si ao longo de 40 anos de carreira que Daniel Sampaio falou ontem na última lição. Apoiando as palavras numa apresentação simples de powerpoint, começou pela família e pelos mestres. Mostrou uma fotografia numa conferência, num ginásio de Florença em 1978, onde nasceria a sua convicção da “importância dos elos familiares no bem-estar”, ideia que o levaria a criar a Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar junto com colegas como José Gameiro e que foi sempre central na sua forma de encarar a medicina.
Dessa centralidade da família no trabalho do psiquiatra – da consulta a jovens ao trabalho nas escolas ou na mediação familiar, nos divórcios litigiosos – mergulhou nos livros e falou do orgulho que sente quando se vence a página em branco. Editou 27 vezes – só na Caminho 637 500 exemplares –, um feito em Portugal, notou.
Cada livro teve um propósito. Logo em 1978, o primeiro: “Drogas: Pais & Filhos”, registos das conversas de pais de toxicodependentes numa altura em que o assunto era duro. Depois, a pedra no charco: “Inventem-se Novos Pais”, de como os pais devem ouvir os filhos adolescentes. “Tudo o Que Temos Cá Dentro”, o seu preferido, começa quando um rapaz de 18 anos o procurou porque a namorada se suicidara. “De Volta à Escola”, o resultado da visita a dezenas de escolas na tentativa de perceber como lidar de forma precoce com os problemas de saúde mental e levar professores, pais e alunos a estarem lado a lado. “Vagabundos de Nós”, a conversa entre mãe e filho sobre a homossexualidade, que viria a ser peça de teatro. E que no Brasil, porque não gostaram do nome, saiu “Eu Sempre Vou Te Amar”, partilhou. “A Razão dos Avós”, de como os avós são os historiadores da família numa altura em que tantas imagens se perdem nos computadores e tantos pais se separam a mal.
Dos livros passou aos grupos de trabalho (a proposta para descriminalizar o consumo de drogas em 1998, a renovação da Casa Pia, a educação sexual). E depois o trabalho na faculdade e no Hospital de Santa Maria.
Aos colegas professores, deixou um reparo: “Preocupem-se com o mistério da sala de aula”, em ser modelo para os alunos, e não só com publicações e investigação. Do trabalho no hospital falou de conquistas como um núcleo para atendimento de adolescentes. Mas também das dificuldades em mudar alguma coisa, quando o diretor de serviço tem pouca autonomia, não escolhe a equipa e nem a assiduidade controla. “Há o sistema biométrico.”
O suicídio foi uma das áreas em que mais se destacou e o final da aula foi dedicado a uma proposta para prevenir comportamentos autolesivos que afetam 7,3% dos adolescentes portugueses. Escolas mais atentas, com estudantes com formação para serem “sentinelas” dos colegas vulneráveis e um sistema de saúde capaz de responder são as pistas que deixa, numa altura em que vai dedicar-se também a um gabinete de apoio aos estudantes de Medicina.
Ao longo da lição falou das suas interrogações, de qual seria o papel do psiquiatra, se o seu trabalho teve impacto. “Um psiquiatra isolado e afastado da cultura jamais poderá perceber o homem perturbado”, respondeu à primeira dúvida, uma das frases mais fortes da aula que chega, entretanto, às bancas em livro. Para a segunda encontrou resposta no Padre António Vieira: “Se servistes à pátria, que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, ela o que costuma.”
A aula começou com uma sinfonia de piano e terminou com um concerto-surpresa dos alunos. “Venham Mais Cinco”, de Zeca Afonso, completou o sentido do adeus do médico. “Não me obriguem a vir para a rua gritar”, cantaram. Daniel Sampaio também gritou na rua, falou aos jovens de megafone e levara imagens disso para a despedida. Usou a palavra para estar próximo na rádio, na televisão e nas aulas. Ontem, as últimas palavras roubou-as ao conde D. Henrique, numa preleção ao filho: “Guardai do meu coração algum tanto. Obrigado.”