“Até terminarem o curso, os dois irmãos partilharam o mesmo quarto, acanhado e austero.” É João Lobo Antunes que o conta numa das crónicas publicadas no último livro, “Ouvir Com Outros”, editado no final do ano passado. São as memórias dele e do irmão António da casa em Benfica onde cresceram.“De um lado, alinhava-se ciência nas fórmulas simples das narrativas de Rómulo de Carvalho e da coleção ‘Que Sais-Je’ – um prenúncio da sua devoção a Montaigne? –, além de romances, filosofia e alguma poesia. No outro, vivia sobretudo poesia que ia sendo arquivada numa memória prodigiosa. Aliás, ambos a musculavam na procura da ‘vasta e infinita profundidade’ de que falava Santo Agostinho.” Distinguia-os o temperamento. “Um estava marcado pelo ferro imperioso do sentido do dever e estudava muito; o outro estudava pouco, mas escrevia páginas e páginas que acabavam invariavelmente no cesto dos papéis.” Os dois tiraram Medicina. “Um cresceu médico com o gosto pela escrita; o outro tornou–se escritor e aproveitou a medicina para alimentar a sua ficção.”
João Lobo Antunes (n. 1944) morreu ontem aos 72 anos, vítima de doença prolongada. Depois de 50 anos de carreira no Hospital de Santa Maria e na Faculdade de Medicina de Lisboa, assumiu em março do ano passado o último cargo público como presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. No último livro usa no preâmbulo uma frase do Padre António Vieira – “O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve” – e nos seus textos encontram-se muitas referências à forma como encarou a medicina e a vida.
E como a literatura sempre foi central no seu pensamento. Defensor da “medicina narrativa”, a história dos doentes era fundamental e, quando começou a ensinar neurocirurgia, levava os alunos para ouvirem esse diálogo.
Conta um episódio neste último livro: “Recordo-me de um dia ter sido visitado por um casal de aristocratas riquíssimos, circunstância já na altura excecional. Eu avisara os dois estudantes que estavam comigo de que iriam assistir a uma consulta extraordinária. De facto, o conde não nos desiludiu. Explicou-nos que as suas dores na coluna tinham começado após a viagem que fizera ao Mónaco para participar no baile dos Grimaldi. E explicou – ‘a questão, sabe, é que a suspensão do Bentley é duríssima.’ Os alunos ouviam tudo pasmados. Depois, porque a hora já era tardia, disse-lhes que podiam ir embora. Responderam-me: ‘Deixe-nos ficar. Isto é melhor do que ir ao cinema.’” A noção de que a narrativa da doença ultrapassa a sua “utilidade heurística” foi uma revelação progressiva, continuava. “O poder curativo da palavra tornou-se, para mim, cada vez mais evidente”.
A forma como um médico lida com a esperança era dos seus tópicos de eleição. “É das tarefas mais delicadas no exercício da clínica, sobretudo no tempo de morrer, que leva a situações ofensivas da dignidade de médicos e doentes pela manipulação do prognóstico e pela fuga no prolongamento insensato da agonia através de cuidados intensivos despropositados. (…) Diria, pois, que a espiritualidade na prática médica exige grande virtude, coragem, perseverança e o que alguém chamou de ‘fidelidade criativa’. E evidentemente esperança, pois como S. Paulo dizia ‘é na esperança que somos salvos’.” Como doente, chegou a escrever, porém, que era um pouco diferente do médico que procura todos os indícios do medo. Recusava a mentira, mas não queria particularmente saber a verdade. “Prefiro a compaixão ontológica, de bicho para bicho.”
Exigente desde criança Em 2015, questionado pelo i sobre o que gostaria de ter sido, Lobo Antunes respondeu “professor de Literatura ou Filosofia, mas levando comigo a experiência de ser médico”.
Se nunca perdeu a inclinação para as letras – com dez livros publicados sobretudo nos últimos anos –, foi pelo lugar na medicina que batalhou, seguindo as pisadas do pai, de quem herdou o nome e a vocação. Lobo Antunes pai – que também era meticuloso na escrita e “só não emendava a Bíblia”, como os irmãos costumavam dizer – foi um dos colaboradores próximos de Egas Moniz, herança que o neurocirurgião fez sempre questão de cultivar e o levou a escrever a biografia do primeiro Nobel português. O tio-avô Pedro Almeida Lima, considerado pai da neurocirurgia portuguesa, foi outra referência.
O “muito estudo” de que fala neste último livro deu frutos. Foi o primeiro a ter 20 na cadeira de Fisiologia na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, onde viria a formar-se em 1968. Em 1970 fez história ao implantar os primeiros olhos artificiais em cegos. Seguiria depois para Nova Iorque, onde se especializou em neurocirurgia na Universidade de Columbia.
A exigência quase obsessiva da juventude trouxe-lhe, porém, algumas mágoas. “Gostaria de tocar piano. Dava uma dúzia dos meus vintes para ter dez em piano.” Herdou a melomania da madrinha, que o levava em criança aos concertos. Nesses tempos marcou-o uma atuação do violinista Heifetz, que no final disse: “As pessoas vêm aos meus concertos para ver se eu toco uma nota errada”, conta em “Ouvir com Outros Olhos”. “A satisfação pela falha ou desaire do outro, o ‘shadenfreude’, é um sentimento que eu também inspiro àqueles que não me estimam.”
O bisturi como pincel Chegou a pensar em cardiologia, mas achou que não teria mãos habilidosas o suficiente. Usava o bisturi mais como pincel do que como chave de fendas, disse ao “Jornal de Letras”.
A busca pela perfeição acabaria por tornar-se princípio de vida. Num texto a propósito dos 20 anos do Prémio Pessoa, distinção que lhe coube em 1996, falou dos seus desejos para Portugal. “O ideal da perfectibilidade é algo por que vale a pena lutar e, embora muitos não o entendam, é o que de melhor se pode aspirar obter pela educação.” Mais justiça na educação e na saúde eram os seus apelos.
De regresso ao país em 1984, dividiu-se entre a Faculdade de Medicina e o Hospital de Santa Maria. Médico de calças de xadrez de palhaço snobe, como descreveu José Cardoso Pires, era mais do tipo “vaidoso ingénuo”, contou no ano passado ao i a mulher, Maria do Céu Machado, médica e colega em Santa Maria com quem era casado em terceiras núpcias há dez anos. Apesar de um ar por vezes distante, era um homem acessível, disponível para amigos e doentes. Generoso e com sentido de humor, lembra quem privou com ele.
Sem participação política ativa, foi mandatário das candidaturas presidenciais de Jorge Sampaio e, depois, de Cavaco Silva, contradição que explicou como a “escolha de um cidadão livre”. Foi conselheiro de Estado de Cavaco. Fez parte da Juventude Universitária Católica, mas com o tempo tornou-se agnóstico.
Diagnosticado com um melanoma há vários anos, a descoberta de metástases em junho do ano passado levou-o a abandonar a clínica – em 2014, aos 70 anos, jubilou-se da faculdade e deixou Santa Maria, mas continuou a ver doentes e a operar na CUF. Neste período, o afastamento da faculdade e de Santa Maria entristeceu-o. “Gostaria de ter sido convidado para tomar parte em simpósios ou mesmo para um lugar honorífico e isso não aconteceu, estava em desacordo com as linhas de orientação dos responsáveis das instituições”, disse ao i Miguel Oliveira da Silva, amigo e antecessor de Lobo Antunes no Conselho Nacional de Ética. Os médicos deram-lhe menos tempo, aguentou ano e meio. Nas últimas semanas foi hospitalizado, mas passou os últimos dias em casa. Deixa quatro filhas e oito netos. O melhor da vida?, perguntámos-lhe há um ano. “As crianças, como dizia o poeta”.