Uma obra aparte, como se doente, pelo efeito de contaminação que a faz nascer de novo, evadindo-se assim face ao que tinha como seu passado, como origem. Quando dois artistas são colocados a par, e sobretudo se entre as suas obras “não existe objetivamente grande afinidade”, como assevera ao i Julião Sarmento, então a esse fosso cairão as suposições construídas em torno das duas obras. “O meu trabalho alimenta-se daquilo que despedaça”, disse certa vez Júlio Pomar, abrindo margem para uma renúncia, para um corte, e “Void” – o nome da exposição que junta estes dois artistas – logo nos alerta para “algo que desaparece no espaço; que é vivido como perda ou privação; uma lacuna ou abertura; uma vaga ou um vácuo”.
Inaugurada ontem no Atelier-Museu Júlio Pomar, em Lisboa, e com curadoria de Sara Antónia Matos, esta exposição insere-se num programa que, “todos os anos, procura cruzar a obra de Júlio Pomar com a de outros artistas, de modo a estabelecer novas relações entre a obra do pintor e a contemporaneidade”. Julião Sarmento, que propôs uma montagem que desde logo rompe com a habitual configuração, virou costas à vertente na sua obra que explora o erotismo, e que levou a que fosse apelidado de “artista do desejo”. Desta vez não há mulheres, e as obras escolhidas fazem todas parte de uma mesma série, “Dirt”, exposta pela primeira vez em 2008. Obras sobre tela e sobre papel, com variadas referências literárias e sem qualquer figuração.
Sarmento não apenas aceitou o convite para o diálogo, mas embrenhou-se, vasculhou o acervo do museu para conhecer os caminhos que não acabam na obra de Pomar e dialogar com eles. Satisfeito, fala numa “colaboração absolutamente fantástica” com o museu, e preferiu não dizer muito sobre o resultado, mas diz que sente ter sido capaz de “congeminar uma obra independente”. Numa fluência caótica, as paredes do Atelier-Museu mais do que a justaposição de dois discursos, são agora um percurso variado, obras finais feitas rascunhos, e vice versa. Nestes intervalos, distâncias, buracos, a aproximação entre Júlio e Julião leva a que entre as suas obras, perfeitamente distinguíveis, se exerça um fenómeno de “porosidade etérea”.
Para perceber melhor as escolhas que foram feitas e todo o processo de elaboração desta “obra única”, falámos com a curadora da exposição e diretora do Atelier-Museu Júlio Pomar desde a sua abertura, em 2012.
Porque optaram por esta vertente do trabalho de Sarmento?
Esta série, “Dirt”, tem este cariz abstrato, onde não há figuras imediatamente reconhecíveis, e surge de um trabalho que Julião Sarmento fez no seu próprio atelier, colocando papéis no chão, sobre os quais se movimentou e deixou marcas, pegadas, manchas, sujidade, pó, com a feitura das próprias obras. Depois estes foram levantados do chão, e assumidos enquanto obra. Foi isso que motivou a escolha desta série, trazer as marcas de trabalho no atelier do Julião Sarmento para o interior do Atelier-Museu Júlio Pomar, que também é um espaço de trabalho. É um espaço de proposição de ideias, de novas formas de expor.
Como foi a colaboração?
Durante este ano e meio de trabalho fomos discutindo com o Julião Sarmento o que nos interessava explorar, e aquilo que nos interessava não mostrar. Evitámos mostrar o conjunto de trabalhos que têm a ver com as figuras femininas, e a representação do erotismo e da sexualidade. Retirámos esse conjunto de obras e decidimos, depois de algum tempo de trabalho, expor esta série, justamente para reforçar a ideia de atelier enquanto espaço de ensaio e de proposição de ideias, algo que tem norteado toda a programação deste espaço. Nada melhor do que este conjunto de obras do Julião Sarmento, que também tem desenvolvido essa ideia de que o artista se movimenta no espaço, que ensaia, que volta a trás, que recua, deixa manchas, marcas… Nada mais apropriado do que fazer este encontro. Um espaço que privilegia a ideia de ensaio e um artista que, nesta série, também expõe essa ideia de trabalho em processo, experimentação, teste.
Quando o Júlio Pomar viu a exposição houve alguma coisa que, para ele, tenha sido uma descoberta ou o tenha deixado perplexo?
Para ele é sempre uma descoberta no sentido em que há obras que ele não vê há muito tempo. Além da coleção que albergamos, com cerca de 400 obras, este acervo está longe de ter tudo, tendo em conta que se trata de um artista com sete décadas de carreira. As obras estão espalhadas. O que fazemos é retirar algumas do acervo e pedir outras a instituições ou colecionadores. Portanto há obras que ele não vê há décadas. Por isso é sempre uma surpresa para ele. E quando as obras estão em contraponto com as de outro artista, como aconteceu primeiro com o Rui Chafes, e como acontece agora com o Julião Sarmento, maior a surpresa é. Porque tem espelho e tem outras relações. Muitas vezes faz sugestões, que nós aceitamos, como é óbvio. Diz sempre o que acha com toda a franqueza e por isso estamos sempre a trabalhar em conjunto. Mas dá-nos carta branca porque para ele também é importante estabelecer estas relações. Mesmo que os artistas sejam muito díspares, mesmo que as suas referências, as suas gerações, geografias ou temáticas sejam muito díspares, o interesse do programa passa por fazer este encontro.
Olhando para estas obras de dois artistas que se afirmaram como expoentes de gerações diferentes e com abordagens que dificilmente se cruzam, qual foi para si o contraste mais expressivo que resultou desta conjugação?
Nós aqui tentamos fazer aproximações sem criar igualdades, ou sem levar a comparações. Estas aproximações não exigem comparação. Como diz, a ideia é até ressalvar o contraste. E aqui é muito evidente que, enquanto o Julião Sarmento é um pintor que facilmente trabalha a abstração, e isso é fulcral para ele, o Júlio Pomar ao longo da sua carreira recusou sempre a abstração. O que também aqui é patente. Todas as obras de Júlio Pomar, mesmo as mais expressivas ou gestuais, têm sempre uma ancoragem na realidade ou no que ele viu da realidade. No caso do Julião Sarmento não. As obras são abstratas e a única maneira que temos de criar uma imagem é lendo a frase, retirada de livros da sua imensa e bem catalogada biblioteca, livros que ele vai sublinhando, recolhendo fragmentos que sabe que depois irá usar em futuras obras. Portanto, há aqui um trabalho de relação entre o texto e a imagem que o Júlio Pomar não tem. Penso que o grande contraste aqui é entre a figura e a abstração.
O que a levou a idealizar este programa em que se cruza a obra de Pomar com as de outros artistas?
O acervo que está aqui depositado é bastante grande para um museu desta dimensão. É um acervo que tem de ser rodado, tem de ser trabalhado por períodos, temáticas. Não se pode misturar tudo de uma vez. Portanto, houve necessidade de, para abordar a pluralidade e a riqueza da obra de Júlio Pomar, ir explorando os seus núcleos. Mas não estão aqui todos representados. Nem todas as épocas, nem necessariamente as pinturas mais significativas, até porque, se os artistas tiveram sucesso como teve Júlio Pomar, é natural que as obras estejam espalhadas pelo mundo. E se queremos trabalhar a obra com alguma seriedade e com alguma sistematização é preciso ir trabalhando os núcleos, e pedindo obras. Isso fez com que descobríssemos múltiplas relações entre os períodos, e com os seus pares. A partir daí surgiu a necessidade de mostrá-lo também em relação com os outros. Não fechar este museu sobre a pessoa exclusiva de Júlio Pomar. E julgo que é preciso até fazer-lhe esta justiça, pois é um artista muito aberto. Continua a trabalhar e a pintar todos os dias, e mantém-se muito curioso em relação ao que se está a fazer e, particularmente, às camadas mais jovens. Nós levamo-lo a visitar galerias, a ver exposições e ele está muito atento ao que se está a fazer. Portanto, ele próprio quer essa abertura sobre a obra dele.
Imagino que seja difícil para si remover-se da experiência da preparação desta mostra, mas a sensação ao entrar aqui é que, nesta obra, intervém um terceiro artista que é Siza Vieira, que assinou o projeto deste espaço. O que sente hoje ao olhar esta exposição tentando abstrair-se do trabalho que esteve por trás dela? Qual é o seu espanto?
A minha formação e o meu doutoramento é mesmo a relação das artes plásticas com o espaço. Estou neste museu há quatro anos, e decidi que nunca iríamos transformar a arquitetura. Isto para lhe dar a perceber o quão importante é para mim a arquitetura e o espaço. Decidi que nunca havia de meter divisórias nem nunca tentaria transformar isto num cubo branco. (Também era difícil porque a marca arquitetonia é muito evidente.) Mas para mim o mais importante é trabalhar com as condicionantes do espaço. Sejam estas janelas, seja a luz, seja a altura, seja este teto de madeira com as asnas à moda antiga, sejam estes nichos que o Siza aqui deixou… Aquilo que fazemos, ou que pedimos aos curadores que convidamos, é trabalhar com as condicionantes do espaço. E usá-las a nosso favor. Foi o que fizemos com o Rui Chafes. Por isso escolhi uma peça que ficava a flutuar no espaço e que era presa por cabos a todo o lado. Nunca evito as condicionantes do espaço, tento até ressalvá-las, porque o considero extremamente importante. Julgo que este espaço com estas aberturas todas é o que torna esta ideia de expansão tão notável, com as obras a flutuar e a subir pelas paredes, sem a tal mediana, e prescindindo da montagem clássica, acho que isto também só faz sentido aqui.