A toque de Caixa…

Vai por aí um enorme alvoroço mediático com as remunerações fixadas pelo Governo socialista – com o apoio implícito da frente de esquerda – para os gestores da Caixa Geral de Depósitos, nomeados após uma espera de vários meses, graças às trapalhadas em que se especializou o ministro Mário Centeno.

Ora, não se percebe a bondade da polémica, quando o primeiro ministro confessou, «com toda a franqueza», que «pode ser muito impopular o vencimento [dos gestores da Caixa] mas não arrisco a má gestão na CGD, porque a estabilidade e o fortalecimento da CGD deu muito trabalho a conseguir». É justo.

Compreende-se a preocupação de António Costa, embora ao tempo do seu antecessor, José Sócrates, a Caixa já remunerasse generosamente os seus gestores, conseguindo, por isso, dispor de talentos financeiros com o perfil de Armando Vara, mandado mais tarde para o BCP, a fim de prodigalizar, num banco privado, a panóplia de conhecimentos adquiridos no banco público.

Quando António Costa hoje enfatiza que é necessário dar aos gestores da CGD «as mesmas condições que têm os gestores dos outros bancos», está a demonstrar-nos, com cristalina evidência, que aprendeu a lição da perda de Vara a favor do setor privado.

É certo que houve, então, quem tivesse a audácia de pensar que os gestores da Caixa se mudaram para o BCP de armas e bagagens a fim de zelosamente tomarem conta do banco fundado por Jardim Gonçalves, obedientes às ordens do poder político à época. Atoardas, por certo.

Desta vez, porém, foi ao contrário. Outro Governo, também socialista, foi buscar parte da equipa de gestores a um banco privado para acudir ao banco público. 

E, para acautelar a ‘concorrência’, Costa veio à liça para defender a duplicação dos salários (leu bem…) da administração da CGD, cujo presidente poderá somar – contas feitas –, entre remuneração fixa e prémios, algo parecido com 600 mil euros anuais, valor ainda acumulável com a respeitável pensão do BPI. Uma ninharia.

Compreende-se, pois, que o antes discreto António Domingues tenha negociado previamente com o Governo ser dispensado da maçada de entregar a declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional, furtando-se à ‘devassa’ na praça pública. Ninguém poderá acusá-lo de não ter acautelado o futuro. Com calculadora.

Mas o tique de legislar em cima do joelho não é bom conselheiro. E o busílis é uma lei em vigor desde 1983, sobre o controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos, prever duas situações em que há a obrigação de apresentar a declaração de rendimentos, abrangendo os gestores públicos e os «titulares de órgãos de gestão de empresa participada pelo Estado, quando designados por este», o que é o caso. Um sarilho, portanto.

Enquanto se aguarda o desfecho do folhetim, ressalta uma conclusão óbvia: o Governo de Passos Coelho era avaro, forçando a administração da Caixa a uma dieta imperdoável.

Com o banco público a precisar de uma injeção urgente de capital (estima-se um montante global à volta de 5,16 mil milhões de euros, uma bagatela caucionada pelo contribuinte), é perfeitamente razoável que os vencimentos atribuídos aos novos gestores deixem a perder de vista os do Presidente da República ou do próprio primeiro-ministro. Gerir o banco público não se compara a pastorear um país…

A realidade aparece assim, ironicamente, de pernas para o ar. A CGD não ‘concorre’ – ou não deveria concorrer – com a banca privada. A sua vocação deveria ser outra.

Foi o que aconteceu durante muito tempo, e deu lucro, enquanto não se meteu por atalhos perigosos, emprestando dinheiro a gente pouco recomendável, envolvendo-se em financiamentos de duvidoso retorno ou, ainda, arriscando uma política expansionista imprudente fora de portas.

Marcelo Rebelo de Sousa advertiu, desconfortável, que «se há fundos públicos, não é possível nem desejável pagar o que se pagaria se fosse um banco privado sem fundos públicos».

Uma posição com histórico. Mas Costa fez ouvidos de mercador, enquanto Catarina Martins e Jerónimo de Sousa – que estão por tudo – se ficaram pela indignação mansa, para não estragar a paz da ‘geringonça’.

O Presidente foi ainda mais incisivo ao lembrar que os «bancos privados tinham cortado os vencimentos aos administradores», ao receberem fundos públicos, «e tinham cortado até 50%». Silêncio.

 

Ora, se a Caixa vai ser recapitalizada com fundos públicos, como pode o Governo adotar uma política remuneratória, no mínimo, imoral?

Às esquerdas tudo se perdoa, é verdade. Até quando mentem descaradamente ao país, que vive na ficção do fim da austeridade e de ter protegido o cabaz de compras, não percebendo que o mesmo dinheiro compra menos. É o sortilégio dos ilusionistas. Andamos a toque de Caixa. Dependurados num sorriso postiço.