1.A expressão que serve de título a esta prosa é da autoria de Michael Kammen, no seu livro “ A Machine That Would go of Itself – The Constitution in American Culture”: o Autor, Professor de História e Cultura norte-americanas, descreve-nos como o significado da Constituição foi evoluindo ao longo da história da Nação americana, sem nunca se colocar em causa a sua vigência e o seu papel insubstituível na afirmação do excepcionalismo americano.
Ser americano é também defender a Constituição dos EUA – há, pois, uma espécie de patriotismo constitucional, em que a Nação, não obstante as divergências políticas, religiosas, económicas e sociais, acolhe a sua Lei Fundamental como sua – e não como uma realidade imposta por autoridades públicas centralizadas e, em muitos casos, distantes. A Constituição dos EUA vive, sobrevive e funciona pelo povo, por causa do povo – e não contra o povo ou apesar do povo, como sucedeu (sucede?) em muitos países europeus.
2.Ora, neste sentido, a Constituição funciona e desenvolve-se, pois, como uma máquina – o seu desenvolvimento é quase mecânico, uma operação segundo regras, procedimentos automatismos.
A evolução da sociedade norte-americana vai sempre no sentido do aprofundamento da defesa e da concretização dos seus valores constitucionais fundamentais. O que é a História norte-americana, pois então? É a Constituição in motion, em movimento. Todo o processo histórico será, destarte, um processo de concretização constitucional. Mesmo quando ocorre uma “avaria”, uma disfuncionalidade neste processo – esta é reparada, solucionada pelo povo, iniciando-se, com força motriz superior, o processo de evolução histórico-constitucional.
3.Pois bem, tais considerações sobre a Constituição norte-americana são aplicáveis à sua democracia – a democracia americana é uma verdadeira “machine that would go of itself”. Ou seja, a democracia norte-americana avança por ela própria – independentemente dos presidentes eleitos, da maior ou menor crispação social, da emergência de novas formas de populismos ou, tão só, de uma ooposição veemente ao “status quo” ou à “p.c. culture” (“political correctness culture”).
À ditadura do politicamente correcto que domina, actualmente, os Estados Unidos da América – e sobretudo na Europa, perdida nas suas contradições e hesitações.
Donde, a tragédia proclamada por tantos e tantos, em Portugal (e um pouco por todo o mundo), de que a vitória de Donald Trump representaria o colapso da democracia nos EUA e a emergência de um Estado autoritário à la Putin – é manifestamente exagerada e descabida. A vitória de Donald Trump representaria somente a ascensão ao poder de um político nada convencional, cortante, verbalmente virulento, sem intermediação de máquinas partidárias e produto dos novos tempos de democracia comunicacional digital.
4.Mas ser diferente, ser contra o cinzentismo do discurso único, ser exagerado e excessivo, por vezes leviano – é muito diferente de ser autoritário, fascista, nazi ou Hitler.
Se o problema de Hitler fosse apenas o de ser desbocado, verbalmente agressivo e contra os meios convencionais de falar e fazer política – a Europa não teria sofrido a maior tragédia da sua História. O Mundo não teria chorado as vítimas que foram instrumentalizadas aos delírios de uma figura que é produto das suas circunstâncias pessoais, as quais se convergiram diabolicamente com as circunstâncias históricas da nação alemã e por outros Estados europeus.
Evidentemente, comparar Donald Trump com Hitler é uma ideia absurda, a roçar o idiota.
O que Donald Trump afirma sobre a necessidade de líderes que decidam, que resolvam, que “drain the swamp”, que limpem o pântano – podemos encontrar em qualquer livro de liderança que enchem as prateleiras das nossas livrarias.
A crítica racional que se pode fazer é que Donald Trump quer transpor, sem mais, os truques e as regras próprias da negociação comercial para o debate político. Para a tomada de decisões política. Note-se, contudo, que não é uma ideia nova – ela já encontrou eco na academia, em estudos de politólogos americanos e britânicos, muito antes de romper na cena política o “Donald”.
5.Seria possível Donald Trump instaurar uma “democracia musculada”, um Estado autoritário nos EUA? A resposta é simples: claro que não. Não, não e não.
Primeiro, porque Donald Trump, com todos os seus defeitos, acredita nos EUA. E acreditar na Nação americana é acreditar, sem reservas, nem hesitações, na democracia.
Donald é contra os políticos – mas não contra a política. Donald é contra o estado da democracia americana – mas não contra a democracia americana.
O “ RealDonald Trump” (o verdadeiro, não o “@realDonaldTrump do Twitter, que tanta polémica tem gerado) é verdadeiramente um democrata – acaso não fosse, como explicar que a NBC o elevasse a uma das suas estrelas de referência, ou que Hillary Clinton fosse tão próxima dele? Ou que todos os Governadores do estado de Nova Iorque, mesmo democratas, tenham sempre solicitado a colaboração de Donald Trump? Porque Donald Trump é um democrata – porventura, mais à esquerda que o “mainstream” do Partido Republicano. Mais à esquerda que Ted Cruz – apenas para citar um exemplo.
Nem Donald Trump poderá ser um “Putin americano”, nem qualquer outro o poderá ser – os EUA e a democracia estão umbilicalmente ligados.
6.Os EUA só existem, só triunfaram à escala global como superpotência – porque nasceram por causa da democracia e para a defesa do liberalismo e do individualismo, que mais não do é do que acreditar na pessoa, na sua força transformadora, no seu génio.
Ao contrário do que sucedeu na Europa (por exemplo), em que se fez os Estados e depois se evoluiu em termos de forma de Estado, de ideologia, de regime económico, de forma de Governo – os Estados Unidos nasceram logo como projecto ideológico, como personificação de uma forma de Estado e de Governo (afirmação da República, das liberdades fundamentais dos indivíduos e da democracia).
7.Por conseguinte, um atentado à democracia é sempre um atentado aos EUA – a Constituição, a democracia política são símbolos americanos tão (ou mais importantes) que a sua bandeira.
A democracia está enraizada profundamente na cultura americana. Qualquer cidadão americano se afirma como defensor da democracia e do liberalismo – é tão natural o seu empenhamento cívico na promoção destes valores como o respirar.
Nos EUA – com Trump, com Obama, com Clinton, com Kanye West , com Katy Perry ou com outro/a qualquer – a democracia não se discute como forma de Governo; como todas as criações humanas, precisa de ser aperfeiçoada, melhorada, corrigida.
8. E aí Donald Trump desempenhou um papel importante: foi um alerta claro para o “establishment” de ambos os partidos reflectirem e sentirem que existe um divórcio profundo entre as expectativas do povo americano quanto à sua democracia – e aquilo que os políticos que, temporariamente servem a democracia americana, lhes prestam e proporcionam.
9.Já na Europa, o caso é diferente: aqui há uma cultura de sentido contrário – a democracia não faz parte da nossa maneira de ser, de existir e de viver. Os cidadãos europeus não ligam o Estado à democracia – pelo contrário, o Estado poderá compatibilizar-se com experiências políticas autoritárias e mesmo totalitárias, desde que garantam a ordem e a superioridade civilizacional do Estado-Nação.
Enquanto que o sistema americano orgânico (separação de poderes do Estado; a separação de funções entre várias agências governamentais no seio da Administração) e inorgânico (a separação entre Estado e sociedade, esta sempre muito vigilante quanto à preservação e defesa da democracia e à sua cultura de liberdade) tornam a democracia do “Tio Sam” uma verdadeira democracia protegida; já na Europa, uma certa propensão histórico—cultural dos europeus por formas autoritários de Governos, por líderes fortes e avessos à liberdade, concatenada por uma aversão ao risco e preferência pelo “comodismo” da segurança paternal do Estado, levam a que o risco de afirmação de um Governo autoritário na Europa (França, Itália, Polónia, Hungria, Noruega, Finlândia…) seja significativamente mais real e preocupante.
10.Todavia, as eleites europeias preferem perder tempo a jogar ao “caça ao Trump”, ao “Trumpémon” ou clamando que “ Don’t Keep Calm/Here is Adolf Trump” – em vez de equacionarem o verdadeiro problema e ameaça à democracia: chama-se extrema-direita na Europa Central e de Leste. Só que denunciar e combater um perigo real é muitíssimo mais complexo (e trabalhoso) do que fantasiar sobre um ficcional “Putin americano”…
11.Os EUA continuam a ser a nossa esperança viva na liberdade e na democracia. Os EUA continuarão a ser a nossa esperança viva e real na liberdade, na democracia e no progresso – quer o Presidente se chame Hillary Rodham Clinton ou se chame Donald J. Trump.
Porque, afinal, a democracia nos EUA é mesmo uma máquina “that would go of itself”. A democracia americana é mais forte e perene que qualquer Presidente conjuntural.
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