Donald Trump é um produto tipicamente americano – afirma-se à exaustão na imprensa portuguesa e europeia. Mas, afinal, que América é esta? É a América WHASP, a tender para o racismo, para a discriminação ostensiva e gratuita, como resquício (não resolvido e ultrapassado) da guerra da secessão, que opôs o Sul (esclavagista) ao Norte (mais industrial e menos dependente do esclavagismo)? Não necessariamente. Esta descrição da realidade – feita na Europa, por europeus, que não percebem, nem querem perceber a especificidade cultural norte-americana – é muito conveniente e assenta plenamente na tendência europeia para criar histórias sobre os “outros” à sua imagem e semelhança. A Europa adora a visão histórico-política dialéctica, dicotómica, em que o mundo se encontra claramente dividido entre os “bons” e os “maus”.
Mas a realidade é bem mais complexa – se assumirmos que o sucesso de Donald Trump é um fenómeno puramente racista, do lado “mau” da natureza dos americanos, que têm “hábitos condenáveis” (defender o direito constitucional de porte de armas – meu Deus! – pensa a elite europeia) e “maneiras rudes” e são ignorantes, então, significaria que todos os apoiantes de Donald caiem nesta classificação. O que é uma conclusão manifestamente exagerada-senão mesmo absurda. Só a elite europeia que se julga moralmente superior a todos os demais povos é que se apressa a avançar tal explicação – esquecendo-se que é responsável por fenómenos bem mais condenáveis como Marine Le Pen ou a extrema-direita alemã. Adiante.
A verdade é que o sucesso de Donald Trump é explicado por fenómenos estruturais e fenómenos conjunturais. Pois bem, Hollywood retratou as duas realidades com mestria e argúcia. Julgamos mesmo que o impacto da cultura popular na eleição que irá determinar quem será o líder do mundo livre nos próximos quatro anos ainda anão foi devidamente analisado. Nem no espaço comunicacional público, nem tão pouco nos meios académicos e científicos. A verdade é que a cultura popular – tão menosprezada pela elite europeia – antecipou (muito antes que o discurso político) a opinião generalizada na sociedade americana sobre os vícios do sistema político; a sua incapacidade para resolver os problemas que afectam os cidadãos americanos; a percepção partilhada por largos sectores da população de que Washington (ou seja, o Governo Federal) já não corporiza o “governo do povo, pelo povo e para o povo” – mas sim o “governo de Wall Street, por Wall Street e para Wall Street”. Enquanto que os meios da imprensa dita intelectual fazem a apologia do sistema e congratulam-se por uma certa “europeização” do american way of life – o povo americano não se revê na elite, mas a repudia ou, no mínimo, a ignora. Quem pretender fazer o retrato fiel (tanto quanto possível) da sociedade americana terá de analisar o fenómeno das redes sociais, da blogosfera, dos canais de youtube…e das sitcoms, séries televisivas e da cultura popular.
Mas será esta presença da política nas séries televisivas, produzidas pelos estúdios de Hollywood, negativa? Não: bem pelo contrário. Mostra à saciedade que, nos Estados Unidos da América, a política ocupa, desde cedo na formação do cidadão americano, um lugar destacado: é omnipresente no discurso, nas preocupações, nas atenções dos americanos. Mesmo criticando, parodiando, ostracizando – a cultura popular é um instrumento essencial para a valorização da Política. Os portugueses e os europeus em geral – muito ciosos ainda das diferenças culturais e das hierarquias sociais – são cépticos em reconhecer que ser popular não significa ser banal ou brejeiro. E que nem sempre o inacessível é sinónimo de qualidade E a verdade é que os filmes de Hollywood ou as sitcoms norte-americanas já fizeram mais pela defesa da democracia – do que muitas óperas, espectáculos e filmes europeus, devidamente financiados por dinheiros públicos, que só os próprios autores acham geniais…(ah, os próprios autores e talvez os críticos de cinema e televisão do “Público” ou do “Expresso”!).
Dito isto, vejamos então como a política norte-americana tem sido percepcionada pelas séries de Hollywood – e como os seus argumentistas intuíram a eleição geral que será disputada, na próxima terça-feira, por Hillary Clinton e Donald Trump. Os exemplos que iremos apresentar de seguida não são naturalmente exaustivos: outras séries, outros filmes poderiam ser aqui evocados. Mas a lista que se segue é a que, na visão do autor destas linhas, melhor demonstra a omnipresença do fenómeno político na cultura popular norte-americana; e que assume o desencanto actual com o establishment, com a incapacidade de o Governo Federal em fix things. Washington is broke – eis o mote que “desinspirou” o encanto do povo americano face à sua política e aos seus políticos; mas que inspirou brilhantes séries televisivas no último ano.
House of Cards (Netflix; em Portugal, exibido na TV Séries) – aclamada série protagonizada pelo actor notável que é Kevin Spacey (estrela de cinema que virou estrela de TV, iniciando um movimento de “migração” do star system entre meios e plataformas variados que prossegue e prosseguirá nos próximos anos). Trata-se para muitos da adaptação para o século XXI do livro “ O Príncipe” de Nicolau Maquiavel – assim como o florentino descreveu as regras de conquista de poder que o príncipe deveria seguir para conquistar e manter o poder no século XVI; “House of Cards” – série de Beau Willmon produzida para o canal de streaming Netflix, inspirada no romance do político conservador britânico Michael Dobbs – descreve as regras para vingar na política moderna. É verdade que “House Cards” já havia sido transposto para o pequeno ecrã pela BBC, mostrando a intriga e os golpes palacianos que compõem a política britânica. No entanto, a mestria, o domínio dos processos políticos e constitucionais e o realismo – ou será que a realidade é demasiado ficcional? – tornam “House of Cards” uma obra-prima televisiva. Frank Underwood (e a sua mulher, Claire, magnificamente interpretada por Robin Wright) personificam a ambição desmedida, a obsessão do poder como domínio sobre outros, um projecto de vida assenta apenas na conquista do poder. E um poder sem limitações de qualquer índole, muito menos morais: a moralidade em Underwood confunde-se com a sua glória, com a sua ascensão, com o seu prazer. O Interesse público da nação americana coincide totalmente com o interesse privado de Frank Underwood – e o interesse público é invariavelmente manipulado para justificar as manobras de Frank, até para justificar actos de corrupção e conluios com lobbystas. “House of Cards” é, pois, a manifestação cultural do sentimento de frustração e revolta do povo para com o sistema político – sobretudo dos mais jovens, descrente s e sem esperança no processo democrático para resolver os problemas que mais lhes afligem. Resta saber se “House of Cards” é a causa (ou mais uma causa) dessa desilusão – ou se é a consequência. Se compararmos com a série “Homens do Presidente” (The West Wing), podemos constatar a evolução dos tempos: enquanto esta última, do final da década de 90, apresentava uma visão optimista realista da democracia; “House of Cards”, em 2015 e 2016, apresenta-nos uma visão ultra-negativa do processo democrático. Perturbante e perturbadora. Em vez de esperança, “House of Cards” instila medo, receio e desconfiança face ao futuro. Uma derradeira curiosidade: Frank Underwood e Claire Underwood mantêm um casamento de conveniência que resiste a tudo: traições, mentiras, violência. Claire tem uma ambição ainda mais desmedida que o próprio Frank. Onde é que vimos isto? Será que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência?
“ Um Homem entre Mulheres” (Last Man Standing, em exibição na FOX Comedy, em Portugal) e “ The Ranch” (Netflix, 2.ª parte da 1.º temporada estreou há poucas semanas em Portugal): Estas duas sitcoms, filiadas na melhor tradição do género nos Estados Unidos da América, mostram uma realidade singular da vida americana. Têm em comum a circunstância de decorrer no estado do Colorado, um “Rocky Moutain state”: embora seja tido nos manuais como um “swing state” , tradicionalmente é um estado republicano. Um red state (o que não deixa de ser algo curioso, visto que o nome do estado se deve precisamente aos primeiros colonizadores espanhóis que baptizaram o seu rio como “cor vermelha”). Pois bem, as duas séries retratam duas famílias do Colorado diferentes entre si: a família Baxter, de “Last Man Standing”, é uma família da classe média/média-alta, cujo patriarca (interpretado por Tim Allen – famoso pela série “Home Improvement” , que teve exibição em Portugal no Disney Channel e apoiante fervoroso do GOP e, em particular, de Donald Trump) é anti-Obama, um empreendedor libertário, crítico de qualquer intervenção pública na vida dos cidadãos e mesmo na economia, definindo Washington como o seu “inimigo” predilecto; em “The Ranch”, acompanhamos a atribulada, embora animada, vida da família Bennett, cujo patriarca (Beau Bennett) é interpretado por Sam Elliott, proprietário de um rancho em Garrison. Neste último caso, os Bennetts pertencem à classe média-baixa, protestante, com uma profunda ética de trabalho enraizada, que não desistem face às dificuldades que a vida lhes coloca e encaram cada sacrifício como o primeiro passo para o sucesso. A banda sonora de “The Ranch” inclui os nomes mais sonantes da actualidade da música country, como Luke Bryan, Justin Moore ou Billy Currington. Enfim, nesta série temos a exaltação da vida redneck, uma versão moderna, sofisticada e metrossexual dos cowboys (Ashton Kutcher faz de cowboy de Beverly Hills). Esta América – personificada pelos Bennett e tão bem caracterizada em “The Ranch” e mesmo em “Last Man Standing” – é subestimada pelos europeus e frequentemente esquecida pelos próprios norte-americanos, sobretudo pelas elites mais liberais. Mas ele – esta América defensora das virtualidades da vida rural, do campo, ligada à agricultura e à pecuária, crente em Deus, desconfianda e céptica face às vanguardas, face ao Estado e defensora acérrima das liberdades individuais, da iniciativa privada e dos méritos do trabalho árdua – existe. E é uma credora muito relevante do sucesso dos EUA – da sua pujança económica, do seu modelo civilizacional, da sua energia, do seu dinamismo. Sem ela, os EUA seriam uma réplica da Europa – e porventura teriam esquecido os princípios que motivaram a sua fundação. Não por acaso o alvo quer de Tim Allen, quer de Elliott em ambas as séries é o mesmo – Barack Obama e agora, Hillary Clinton…O Colorado é a América do GOP. É a América que apoia Donald Trump. Porque Donald Trump não quer criar uma América nova, nem negar o passado da América – a América que hoje apoia Donald Trump já existia. Trump apenas sintonizou-se com ela, aproveitando os circunstancialismos próprios da nossa época histórica.
“Good Wife” (FOX LIFE) e “Madam Secretary” (TV Séries) – A série “Good Wife” retrata a vida de Alicia, esposa exemplar de um advogado e político, o qual é detido por envolvimento em esquemas de corrupção e escândalos sexuais. Com filhos para sustentar, Alicia (um desempenho extraordinário de Julianna Margulies) regressa à advocacia, granjeando um sucesso ímpar numa grande sociedade de advogados. Já “Madam Secretary” retrata as incidências da vida política e familiar de Elizabeth McCord (mais um papel soberbo de Téa Leoni), Secretária de Estado dos EUA. Isto é, em ambas as séries, é louvado o papel da mulher no exercício de actividades profissionais em que os homens ainda dominam – na advocacia e na política. Assume-se, pois, uma visão feminista da vida: a mulher possui virtudes e qualidades intrínsecas que lhe permite desempenhar com mais eficiência, probidade e qualidade funções de decisão. Qual a inspiração das duas séries? Aventa-se que seja Hillary Rodham Clinton, provavelmente a próxima Presidente dos EUA. No caso de “Good Wife”, Hillary Clinton está presente na superação, no espírito de sacrifício – que se traduz em independência – de Alicia que encara os escândalos do seu marido não como um problema insuperável, mas sim como uma oportunidade para recomeçar a vida e construir a sua carreira; já no caso de “Madam Secretary”, a semelhança é ainda mais notória: a personagem de Téa Leoni é um retrato retocado, quase idílico, da experiência de Hilalry Clinton como Secretária de Estado do Presidente Barack Obama. Por vezes é difícil de destrinçar a realidade da ficção – onde termina Hillary Clinton e começa o seu reflexo ficcional que é a personagem de Téa Leoni? Porventura se Hillary Clinton se tivesse apresentado como Elizabeth McCord nestas eleições, teria obtido uma vitória esmagadora contra os candidatos anti-sistema, Bernie Sanders e Donald Trump.