A campanha entrava definitivamente no reino dos reality shows, mas como sublinhou Larry King tudo ficou mais interessante. O patrão das celebridades lembrou que é a pessoa de maior sucesso que alguma vez entrou na corrida. Podre de rico, frisou, vai meter dinheiro do seu bolso, e exibiu também os galões de rei do imobiliário, dizendo que vai pôr muros no caminho dos mexicanos que estão a entrar no país. Entre as gargalhadas e a histeria, Trump tornou mais fina a fronteira entre política e espectáculo.
Em teoria, o homem tem tudo para ganhar. E o que tem mais que ninguém são as duas faces da nova moeda espiritual, que, como Deus, não se vê mas tem o dom da ubiquidade, configurando para meio mundo o paraíso na terra: Fama & Dinheiro, Inc.
Em vez de quem, é mais lógico perguntar o que é Donald Trump? O rosto é aquele que sorri na nota mental com que tentamos sinalizar uma cultura que tirou a ganância da lista dos sete pecados e a elevou à condição de confissão, com tantos fiéis e tamanha devoção que no mundo actual mostra como o Ocidente não está tão longe assim de certo Oriente e da selvajaria dos seus extremismos.
Trump eleva-se como uma das marcas com maior simbolismo nos arranhados céus dos nossos dias. No sector imobiliário, é ele quem reina com o seu carisma bimbo. Há outros príncipes, mas foi ele que fez do espalhafato uma estratégia ganhadora. E não é só nos EUA que as suas torres embandeiradas se içam; já chegou a Toronto (Canadá), ao Panamá, a Istambul (Turquia) e a Seul (Coreia do Sul). Com “The Apprentice”, lidera também audiências em todo o globo com temporada atrás de temporada deste reality show que tanto fez para espalhar o novo evangelho: o empreendedorismo.
Agora, e depois de várias ameaças, deu vida aos rumores que tinham um prato ao lado do seu crescente ego. Alimentava há anos a ideia de que o seu último desafio podia ser a corrida à Casa Branca. Para muitos não passava de outra das suas manobras para segurar as objectivas, dominar os holofotes, o inferno vicioso da atenção pública, de que se serve como quer. Segundo muitos analistas, o grande desafio que tem pela frente agora que oficializou a candidatura será provar que a sua proposta merece ser levada a sério. Nos próximos meses este será o botão mais premido pelos seus rivais e pelos media. Mas a política norte-americana, como boa parte dos analistas tem notado, aposta cada vez mais na anedota, com o confronto de posições a servir de palco a um desgraçado carnaval mediático.
Trump só teve de esperar que a água aquecesse. Se é circo o que o público quer, nessas águas é ele o tubarão branco. Os próprios políticos há muito se renderam à evidência de que este Donald não se limita a grasnar na hora de ir buscar votos. Ele mesmo, em 2012, atirou à cara de Mitt Romney como os seis estados em que a campanha o usou nas primárias foram ganhos, e que se lhe tivesse sido dada a mesma oportunidade na Florida e no Ohio, o candidato republicano teria ganho a corrida e hoje não seria Obama, mas Romney o presidente.
Toque de Midas No início da década de 1990 esteve à beira da falência, tanto a nível pessoal como nos negócios, mas só precisou de quatro anos – o período de um mandato presidencial – para dar a volta por cima, pagando cerca de 900 milhões de dólares e reduzindo as dívidas acumuladas pelas suas empresas. Além dos hotéis e casinos, tem dois campos de golfe na Escócia, já teve uma equipa de futebol americano e também uma companhia aérea. O seu currículo é uma epopeia financeira, e terá falhado muitas vezes, o que o levou a dizer no seu manual para aprendizes, “Midas Touch” (“O Toque de Midas”), que os melhores negócios da sua vida foram alguns que não chegou a fazer. Mais que a inteligência, os créditos vão, segundo ele, para o seu apuradíssimo instinto.
Seguiu as pisadas do pai, Fredrick Trump, que era já um nome estabelecido no sector imobiliário, mas que centrava o negócio na construção de habitações a preços acessíveis para a classe média em Brooklyn, Queens e Staten Island. Antes tinha sido enviado para a Academia Militar de Nova Iorque pelos pais, que esperavam que o ensino rigoroso e a disciplina incutissem nele um espírito pragmático e orientassem a sua energia de uma forma positiva. Distinguiu-se nos estudos como nos desportos, e seguiu depois para a Faculdade Wharton, da Universidade da Pensilvânia, onde se licenciou em Economia.
Sob a orientação do pai, o jovem Trump iniciou a vida profissional, mas não demorou a sentir a inquietação por projectos mais desafiadores. Assim, mudou-se para Manhattan e não perdeu tempo no cerco aos mais ricos e famosos, tornando–se um dos grandes senhorios da cidade na década de 1980.
Estrela da TV Ele e a primeira mulher, a modelo de origem checa Ivana, eram figuras cimeiras entre a elite nova-iorquina. Ao fim de 15 anos de casamento, o glamour não segurou o romance e viveram no olho do furacão publicitário o divórcio e uma longa batalha judicial, em que Ivana conseguiu um acordo de 20 milhões de dólares no momento em que Donald batia no fundo. A hora mais difícil e o esforço para regressar ao topo viria a revelar-se o momento definidor no seu percurso, e o livro em que conta como renasceu das cinzas, “The Art of the Comeback”, transformou-se num enorme bestseller. Em 2003, “The Apprentice” estreou e foi um êxito automático. Trump começou por ganhar cerca de 50 mil dólares por episódio, mas a enorme popularidade do programa levou a NBC a actualizar este valor e, de acordo com os últimos números, já ganhava 3 milhões por episódio, o que faz dele uma das personalidades televisivas mais bem pagas de sempre. Em 2007 este sucesso valeu-lhe a atribuição de uma estrela no Passeio da Fama de Hollywood.
Depois de uma relação de alguns anos com a actriz Marla Maples, Donald está há uma década casado com outra modelo, também do Leste europeu, a eslovena Melania Knauss. Com 45 anos, tem menos 24 que ele, que fez 69 em junho. Sendo um de cinco irmãos, Donald teve também cinco filhos, o último (Barron) da relação com Melania. Antes teve uma filha com Marla (Tiffany), e três filhos com Ivana (Donald, Ivanka e Eric). Os mais velhos estão ao lado do pai na condução do império familiar, flanqueando-o igualmente nas várias temporadas de “The Apprentice”.
A entrada em cena de Trump na vida política norte-americana pode revelar-se um momento de viragem numa corrida até aqui nada empolgante e que – depois do anúncio da candidatura de Jeb Bush, e com a preferência assumida desde cedo por Hillary Clinton do lado democrata – parecia fadada a redundar noutro confronto entre dinastias políticas. O “Washington Post” referia-o recentemente como um americano com menos de 38 anos que só viveu umas presidenciais – as de 2012 – em que o nome Bush ou Clinton não estivessem de um, ou dos dois, lados da corrida. A questão do nepotismo vem à cabeça, como vem a conversa de uma suposta inveja americana da família real britânica. O sangue azul – ou a educação paga a peso de ouro – ajuda a traçar uma fronteira entre a corte e o circo no fenómeno da celebridade. Se há quem prefira uma Kardashian à rainha Vitória, o que não deixa de ser evidente é o quanto, num tempo em que reina a apatia, ter um nome e um rosto conhecido é um grande ponto a favor de qualquer candidato.
Podre de rico Em Trump, tudo é sinónimo de celebridade. Quanto a dinheiro, o próprio não se cansa de dizer que esse nunca será o problema. “Não preciso de pedir dinheiro a ninguém. Vou usar o meu próprio dinheiro… Sou podre de rico”, disse-o no discurso em que anunciou as suas intenções a uma multidão de apoiantes na Trump Tower de Nova Iorque – a maioria, segundo o “Hollywood Reporter”, actores pagos a 50 dólares por cabeça, através de uma agência de castings. Quanto é podre de rico? Uns 8 mil milhões de euros, de acordo com a declaração do total dos seus activos que decidiu tornar pública ao avançar com a candidatura.
Se Trump não tem de se preocupar com cortejar os bolsos mais fundos, será mais fácil destacar-se da concorrência, e revigorar a imagem do homem que viveu plenamente o sonho americano e pode lutar para que este não se perca. Alguém que ergueu o seu império do chão e vem dizer aos americanos que o sonho que fez a grandeza da nação está “morto”. E se o grande obstáculo é ser levado a sério, Trump tem pelo menos uma mensagem simples e eficaz: “Se eu for eleito, vou trazê-lo de volta [o sonho americano], maior e melhor e mais forte que nunca. Vamos devolver à América a sua grandeza.”
O magnata nunca ocupou um cargo público. No entanto é ele que aparece há mais de uma década na televisão a despedir todo o tipo de pessoas, a fazer e desfazer celebridades – o equivalente nos nossos dias a um fazedor de reis. Nos próximos meses tudo fará para assemelhar a corrida a um concurso televisivo, e o mais problemático é que a única estratégia para derrubar alguém assim seria falar menos dele, dar-lhe menos importância. Mas se há uma coisa que Donald Trump aprendeu é a manter o público interessado. Traz uma enorme audiência que se habituou a prestar-lhe toda a atenção, criou uma enorme tolerância aos seus excessos e idiossincrasias. Já os seus colegas, mesmo os poucos que conseguem ser levados a sério, são também tidos como maçadores. E enquanto os rivais o tratarem como um palhaço, não lhe dão valor nem vêem o perigo que o seu espectáculo representa. Trump é o palhaço que comprou o circo e sabe geri-lo como ninguém. Só lhe falta convencer o público de que fará um melhor trabalho que os políticos a multiplicar e distribuir os pães.