“Uma coisa é clara: o trabalho do eng.o António Guterres fica mais complicado com uma administração Trump do que com uma administração Clinton.” A garantia é dada pelo embaixador Seixas da Costa – afirmação que não espantará os que estiveram mais atentos à campanha de Donald Trump.
As repetidas ameaças em cortar no investimento financeiro em programas das Nações Unidas, nomeadamente no que toca às alterações climáticas – que o presidente eleito classificou como um conceito “criado pelos chineses” para prejudicar a produção norte-americana –, auguram uma vida difícil para o futuro secretário-geral e para as suas aspirações de tornar a ONU “great again”. A analogia é de Viriato Soromenho Marques. “Guterres pensava que tinha nos EUA um aliado, mas vai ter um empecilho dos maiores”, afirma o professor catedrático ao i.
Para o especialista – que recorda a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, assinada no Rio de Janeiro em 1992, o Protocolo de Quioto –, o acordo de Paris irá avançar independentemente do apoio ou não dos EUA, mas vê o ataque de Trump às questões relacionadas com as alterações climáticas como “um fator de instabilidade”.
“É de um analfabetismo cívico, político e científico terrível. Pode acontecer que os EUA comecem a ser alvo de uma atitude hostil por parte dos outros países, o que poderá traduzir-se, para já, numa guerra comercial.”
É importante também não esquecer que os Estados Unidos são o maior investidor da organização, apesar de terem cerca de 1,1 mil milhões de dólares em atraso nas suas contribuições. Um corte no investimento poderá tornar difícil o cumprimento da agenda do secretário-geral.
Note-se, contudo, que esta não é de todo uma questão “consensual” a nível interno, como explica Lívia Franco, professora no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, ao i. “Os EUA são o país que paga o essencial do orçamento das Nações Unidas quando, muitas vezes, as políticas da organização não são muito do interesse do país.”
tradição republicana Se olharmos para história política norte-americana, percebemos que esta desconfiança dos EUA perante as Nações Unidas não é recente, especialmente por parte do Partido Republicano. “Tradicionalmente, as administrações republicanas são menos abertas a um trabalho com as instituições multilaterais e, em particular, com a ONU”, reforça Seixas da Costa.
Lívia Franco refere mesmo que Trump “não é um fã do multilateralismo efetivo”, ou seja, não lhe agrada o papel que “os outros países no contexto das organizações internacionais” podem ter “para limitar o poder, a capacidade, a influência e os interesses dos EUA”. Seixas da Costa vai mais longe, sublinhando que os Estados Unidos sempre tiveram uma “posição utilitarista” em relação à ONU, isto é, a organização é utilizada apenas “quando lhes dá jeito”.
secretário de estado A verdade é que poucos dias se passaram desde as eleições, logo, isto são tudo apenas leituras dos sinais que Trump foi deixando ao longo da sua campanha. Será preciso esperar, em particular para saber quem será o novo secretário de Estado – o equivalente ao ministro dos Negócios Estrangeiros.
“Trump não parece ter um pensamento muito consistente em matéria de política internacional. Quem assumir o cargo de secretário de Estado é quem mais diretamente influenciará e determinará a nova maneira de estar dos EUA na comunidade internacional”, adianta Lívia Franco. Um dos nomes apontados tem sido Newt Gingrich, um republicano com um “histórico de menos atenção às Nações Unidas e aos fóruns multilaterais”, relembra Seixas da Costa.
Outra escolha determinante será a do próximo embaixador dos EUA na ONU, uma vez que é quase certa a saída da atual embaixadora escolhida pela administração Obama.
“Samantha Power era alguém que via com um olhar muito benévolo o papel que a ONU tem para desenvolver no mundo. O critério para escolher [o novo embaixador] vai estar mais de acordo com uma visão não tão benévola sobre a organização e sobre multilateralismo”, afirma a docente da Universidade Católica.
Guterres é o homem certo Tudo pode traduzir-se numa nova postura dos EUA perante as Nações Unidas, mas nada a que António Guterres não esteja habituado. Negociar apoios e consensos a nível multilateral fazia parte do seu trabalho na ACNUR, destaca a especialista em relações internacionais. “Guterres é o homem que pode estar à altura dos desafios que se vão colocar no novo relacionamento entre a ONU e os EUA”, acrescenta a docente.
Já Soromenho Marques não tem quaisquer dúvidas. “Guterres é a pessoa necessária naquele sítio porque é um homem que tem a ambição no sítio certo: quer ficar na história com um bom nome e boa reputação. Não é um indivíduo venal.”
Mas até onde pode ir a influência do futuro secretário-geral? “O mundo precisa de alguém com integridade e inteligência que seja capaz de ajudar a que a América não derrape demasiado, até para o interesse nacional americano. Basta que o secretário-geral da ONU formule publicamente as suas divergências e os motivos. Isso já é um fator que vai ter impacto na comunidade internacional”, acrescenta.