No dia seguinte às eleições nos EUA, apareceu uma placa à porta de um café em Inglaterra que rezava que “todos os americanos tinham de estar acompanhados por um adulto”. Partilha dessa ideia?
A América é um sítio muito grande: tem pessoas muito bem preparadas, como tem também pessoas com uma visão muito estreita do mundo. Mas mesmo as pessoas que têm uma visão muito estreita do mundo têm, em geral, a noção do que querem da vida. E têm direito a ter uma palavra a dizer.
O que significa a vitória de Donald Trump? Tem um significado único ou pode ser remetida para um conjunto de significados potencialmente contraditórios [reação à globalização e racismo, por exemplo]?
Tem havido uma discussão se devemos dar mais importância às questões económicas, nomeadamente aquelas da globalização e das desigualdades, ou se devemos explicar o fenómeno de Trump e outros populismos de direita como questões eminentemente culturais. Num mundo em rápida mudança em que uma parte das sociedades participa ativamente nessa mudança, tendo ligações com o mundo inteiro, há uma parte da população que não só não participa nesse novo mundo excitante como se sente excluída e ameaçada simbolicamente. Acho que há estes dois elementos a funcionar ao mesmo tempo, o cultural e o económico, e dou muito valor às questões materiais, que têm que ver não apenas com haver pessoas que são os perdedores da globalização, mas com o facto de as pessoas pressentirem o risco de ficarem numa situação que é difícil e de não terem rede para se protegerem. Tudo isso ajuda a explicar as ligações simbólicas e culturais em relação ao que se passa. A eleição de Trump não é apenas um episódio americano, é algo que se está a passar em todo o mundo.
A parte cultural e política não está também relacionada com a situação económica?
Nós não podemos distinguir nunca completamente o que é economia e o que não é economia. Temos vivido nas últimas três décadas uma transformação muito grande na forma como o mundo funciona, uma mudança que tem uma dimensão económica, tecnológica e cultural, na medida em que a combinação da economia e da tecnologia afeta a imagem que as pessoas têm de si próprias e do mundo. Esse processo tem dois fatores fundamentais: desigualdade e incerteza. Tudo o que nós dizemos sobre os perdedores da globalização, o afastamento das populações em relação às elites, consegue encaixar-se dentro desta análise sobre uma transformação que tem elementos económicos, tecnológicos e simbólicos e em que as coisas jogam umas com as outras. Do meu ponto de vista, que eu reconheço que pode estar muito enviesado pela minha formação, nós vivemos hoje num mundo em que a capacidade de regular o funcionamento dos mercados é muito baixa e isto está na base quer da incerteza quer das desigualdades. Isso é um aspeto que é indissociável de tudo aquilo que sentimos, seja do ponto de vista económico ou cultural.
Não se pode fazer um paralelo, com as devidas distâncias, entre os dias de hoje e os anos 30, no sentido que há um crescimento das desigualdades, uma sensação de fim de época, uma perceção da corrupção omnipresente e um crescimento do extremismo de direita?
Não sei se estamos nos anos 30 ou nos anos 10. Os anos 30 significaram que o sistema estava numa situação de rutura. Mas muito antes de se chegar a essa situação de rutura, nos anos 10 já era claro que a globalização liberal, da época da Belle Époque e do padrão ouro, já estava a desestruturar completamente as sociedades. Nos anos 90 do século XIX houve várias bancarrotas em vários países do mundo, bancos a controlarem governos nacionais para estes pagarem dívidas, bancos a serem resgatados e evitarem contágio sobre outros bancos, em qualquer caso a imporem às populações os custos desses resgates. Parece-me que a situação que estamos a viver é mais próxima desse período em que, ao mesmo tempo que havia períodos de acumulação da riqueza, se verificava o acentuar das contradições económicas e políticas nesses países que vão desembocar na i Guerra Mundial. Já nos anos 30, depois da guerra, chegamos a essa incapacidade sistémica de dar resposta à crise. Acho que estamos mais na fase anterior, em que há sinais claros de que o mundo não vive de uma forma estável o tipo de processo de globalização que vivemos até agora. Vamos ver se nos anos mais próximos vai haver alguma resposta que proporcione alguma estabilidade ou se, pelo contrário, vamos estar durante dez ou 15 anos a encontrar soluções que são absolutamente provisórias e que agudizam as tensões, e aí estaremos, de facto, num período comparável aos anos 30, em que as ruturas se tornam inevitáveis.
Nós vivemos uma situação de crise mas em que as respostas são potencialmente diversas. Nos EUA, os mesmos eleitores que elegeram Donald Trump poderiam ter eleito Bernie Sanders. A crise económica proporciona um enorme descontentamento, mas as respostas estão em aberto.
Mas, se virmos, não é preciso chegar aos anos 30 para ver uma situação semelhante.
Eu não estava nos 30, já estava nos dias de hoje (risos).
Eu sei, mas estava eu a pensar. Se olharmos para o que se passou em Itália no final da década de dez e no início dos anos 20, tínhamos uma situação semelhante, em que grande parte das pessoas viam a necessidade da alteração do estado das coisas e a situação tanto poderia ter caído para um lado como para o outro. Não é certo que estes populismos nacionalistas e xenófobos vão vencer em todo lado. Mas há uma dificuldade muito grande em fazer face a estes populismos de direita. É o facto de termos tido durante décadas a social-democracia a abandonar projetos alternativos a esta globalização.