Por que se espera para reabrir a questão?

Na terceira e última parte deste artigo dedicado aos ‘Painéis de S. Vicente’ recorda-se como a comunidade académica julgou de forma desleal e célere uma tese que merecia ser discutida com abertura. Afinal, porque ignorar dados que só contribuem para valorizar a obra?

No final de 2002, a tese expressa no livro Os Painéis de Nuno Gonçalves (Verbo, 2000) despertou o interesse do dr. Pedro Roseta, então ministro da Cultura, que despachou favoravelmente um pedido de leitura da inscrição no pé do adolescente do Painel do Infante. Este pedido fora feito em novembro de 2002 ao Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT) pelos autores da obra e estava coadjuvado pelas assinaturas de cerca de duas dezenas de personalidades destacadas da cultura e da vida universitária portuguesas. Assinaram o pedido, entre outros: Agustina Bessa-Luís, António e João Lobo Antunes, Eduardo Lourenço, Guilherme d’Oliveira Martins, Marcelo Rebelo de Sousa, Loureiro dos Santos, Vítor Melícias, Daniel Sampaio e Vítor Serrão.

O resultado positivo da leitura, essencialmente favorável à nova tese, foi assunto de notícia na primeira página do semanário Expresso de 22 de fevereiro de 2003. Não muito tempo mais tarde, Pedro Roseta requereu ao Instituto Português dos Museus (IPM) a organização de um encontro-debate no MNAA.

Esperar-se-ia que uma sessão científica decorresse com serenidade e que evitasse a armadilha da polémica exacerbada e emocional, que tanto tem caracterizado a Questão dos Painéis. Infelizmente, assim não aconteceu e o encontro realizou-se a 29 de maio de 2003, em circunstâncias controversas que captaram a atenção destacada de meios de comunicação social. Resumidamente: a organização do debate tentou pôr a nova tese em manifesta situação de inferioridade, desvirtuando assim a boa iniciativa do ministro da Cultura.

Com efeito, José Luís Porfírio, o então diretor do MNAA, anfitrião e moderador do debate, destinara que a tese fosse sujeita durante a manhã a sucessivos tratos de polé universitários, remetendo os dois autores de Os Painéis de Nuno Gonçalves para a segunda fila da audiência.

Os dez minutos iniciais da sessão da tarde foram-me reservados para a exposição da tese no centro da polémica. Seguidamente, foi facultado a um conjunto diversificado de autores exporem as suas teses sobre os Painéis, pretendendo-se assim desfocar a atenção da assistência dos novos dados em análise.

Uma constante nos julgamentos desleais é a celeridade implacável com que cai a lâmina do veredicto pré-determinado. Assim, logo ao final da mesma tarde, o trânsito em julgado era facultado a Isabel Salema, jornalista do Público: «Não há motivo nem justificação [para o IPM promover a realização ulterior de um encontro com especialistas internacionais] não compete ao Ministério da Cultura ter um outro papel». Nestes termos, Manuel Bairrão Oleiro barrava a passagem a instância superior, tolhendo uma eventual ação futura do ministro da Cultura. Para o então diretor do IPM, o susto tinha aparentemente passado e Isabel Salema já dispunha de título apropriado para a notícia de uma página na edição do Público do dia seguinte: ‘Nova tese sobre os Painéis não convence universidades’.

De forma significativa, treze anos decorridos sobre a realização do encontro-debate, não deu este origem a quaisquer actas escritas.

Conivência com fraude científica

Mas, perguntará o leitor, que móbil obscuro poderá motivar a cultura institucional, nomeadamente o ministério que a tutela, a bloquear a aceitação, se não mesmo a divulgação, de dados que só contribuiriam para enaltecer os Painéis de São Vicente de Fora? Poderá alguma força oculta manipular de forma discreta as manobras de bloqueio? Poderão alguns corifeus, guiados por espúrio sentido de irmandade espiritual, investirem-se no papel de pressurosos guardiães do prestígio intelectual póstumo de nomes conhecidos – pensa-se, em particular, nos de José de Figueiredo, Jaime Cortesão, Reynaldo dos Santos e, quiçá, no de Almada Negreiros, este último cultor de veia mais fantasista – e optarem por iludir a leitura honesta da inscrição, receosos que ela confirmasse que muito do labor daqueles autores não intuíra a tese correta?

No entanto, tal solicitude revelar-se-ia desajustada, ou não tivesse o próprio Jaime Cortesão expressado o probo desejo: «A única forma de acabar com todas as dúvidas seria o aparecimento dum documento definitivo ou uma série deles que identificassem o Santo e as principais figuras que o veneram e, ao mesmo tempo, revelasse o pensamento ou o propósito que os reúne no mesmo culto, ou seja, o significado do retábulo».

Ora, a inscrição identificada no botim do adolescente será, com toda a verosimilhança e de uma forma verdadeiramente imprevista, a peça documental desejada. A escolha desta citação de Jaime Cortesão é pertinente pelo seu conteúdo. No entanto, a evocação do nome desta respeitável, e influente também, figura da oposição republicana ao regime de Salazar, é deliberada – confessadamente, Mário Soares colocou-se na posição de seu discípulo espiritual. Pretende-se assim sugerir à imaginação do leitor a falta de entusiasmo onde o entusiasmo do autor destas linhas esbarrou quando, por variadas vias e com uma insistência que, provavelmente, foi sentida como impertinência, tentou que lhe fossem entreabertas as pesadas portas da Cultura institucional.

Pondere-se neste ponto o insólito de ver o Políptico de S. Vicente de Fora – que carrega uma história já pesada, por ter tido o estranho condão de atrair sobre si tantas paixões portuguesas – móbil de manobras de ocultação científica caucionadas ao mais alto nível. Atendendo à natureza crucial daquilo que tem sido ocultado – tem-se em mente, sobretudo, a inscrição autoral no botim do jovem adolescente – aquelas manobras consubstanciam, se forem ponderadas de forma severa, conivência numa fraude científica.

Béatrice Fraenkel vai ao cerne da questão (‘La Signature’, in Histoire de l’écriture, de l’idéogramme au multimedia, Flammarion, 2001): «A intenção de assinar pertence ao registo jurídico. O sinal captura sob uma aparência modesta princípios fundadores tanto da sociedade como do indivíduo».

Escreveu em 2003 a mesma especialista sobre a inscrição autoral no botim: «Penso que as hipóteses de Jorge Filipe de Almeida são extremamente sólidas. Estou pessoalmente convencida de que foi encontrada uma assinatura escondida nos Painéis».

Então, por que se espera para avançar para uma segunda peritagem oficial, mais alargada e aprofundada do que aquela já feita em 2002 pelo ANTT? A eventual reconfirmação da assinatura de Nuno Gonçalves e do ano de 1445 não surpreenderia, pois estranho seria que contrariasse o facto referido por José Manuel Barata-Feyo (Grande Reportagem, junho de 2003): «A leitura das iniciais, qual ovo de Colombo, pode ser hoje feita por simples camponeses letrados da minha aldeia beirã».

«Resistência a uma discussão intelectual aberta»

No entanto, a denúncia estridente da obstrução do MNAA – obstrução que tem tido caução oficial ao nível mais elevado, enfatize-se – corre o risco de ser contraproducente, tendo em conta o descrédito que tem toldado a Questão dos Painéis. É minha convicção que a perceção calculista e fria deste último facto tem potenciado o topete de múltiplos atores no caso.

A denúncia circunstanciada empreendida nestas linhas não teria cabimento caso a década e meia já decorrida sobre a publicação de Os Painéis de Nuno Gonçalves tivesse sido aproveitada para promover um debate honesto, tentando desbloquear uma situação incómoda e que ganha gravidade acrescida quando for reconhecido que a ocultação da evidência corresponde a defraudar os Portugueses de boas notícias a que têm direito. Face à situação presente de silenciamento continuado a denúncia é justa.

Transcrevem-se as declarações que o Professor José Alberto Machado proferiu para o documentário Os Painéis de Nuno Gonçalves à Luz da Razão. Elas ressoam com a autoridade que a cátedra de História de Arte na Universidade de Évora confere; demonstram também a coragem do seu autor que ao proferi-las se apartou, num ponto particularmente melindroso, do pensamento de grupo de muitos dos seus pares. Afirmou José Alberto Machado: «E eu só tenho que lamentar, com toda a honestidade, que tenha havido alguma resistência no mundo académico e erudito, que preferiu encostar-se a teorias não direi mais fáceis, mas mais consagradas, do que enfrentar uma discussão intelectual aberta e profícua que eu teria saudado, porque se pretendemos que a História de Arte continue a ter foros de ciência tem evidentemente que adotar métodos de ciência, um dos quais é a credível e aberta adoção e discussão rigorosa de uma nova hipótese, que não deve ser rebatida com estereótipos ou com ideias feitas.

Só posso desejar que quem tem obrigações institucionais neste país, a começar pelo próprio Estado, que guarda este penhor maior da memória nacional, não veja problema nenhum em efetivamente – ao contrário do que sucede na atual exposição do Museu de Arte Antiga [Primitivos Portugueses (1450-1550), o século de Nuno Gonçalves; organizada sob a égide da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, decorreu entre novembro de 2010 e abril de 2011] em cujo catálogo este problema é completamente omitido – reabrir a discussão, readmitir a nova hipótese, que me parece, aliás, extremamente validável e extremamente provável e que, certamente, não tirará nada ao mérito e à honestidade de muitos intelectuais que no passado se debruçaram sobre os Painéis e que poderá significar um avanço importante do saber, não só em termos de História de Arte mas, sobretudo, em termos de cultura portuguesa e em termos de reafirmação e documentação duma peça fundamental da memória nacional».

Os rostos e o espírito da Lisboa de 1445

Poderá, a um nível quase subconsciente, talvez, levantar-se resistência a reconhecer no políptico uma cena fúnebre? Mas, precisamente, não são alguns dos monumentos cimeiros da Arte Portuguesa – evoquem-se os túmulos de Pedro e Inês em Alcobaça e a Capela do Fundador na Batalha – exemplos de arte fúnebre? Será que o tom de celebração que nos habituámos a associar a esta pintura, que é um verdadeiro ícone da Era dos Descobrimentos, ficaria de alguma forma velado ao nela reconhecer o funeral cristão desejado para o Infante Santo? No entanto, a impossibilidade de fazer o luto por um ente querido na ausência do seu corpo, angústia de todos os tempos, dirá mais aos Portugueses de hoje do que o ato de solicitar a «intercessão de São Vicente na Cruzada contra o Infiel».

Recearemos nós que na gesta de Marrocos o desastre de Tânger não valha a conquista de Arzila? Quereremos celebrar a partida e não a chegada? Porventura temer-se-á que o confinamento de uma capela de confraria possa tolher a vertigem do Oceano?

Mas, deverão o sonho e a confabulação – formas pouco sãs de se compensarem na alma portuguesa as limitações do tempo presente com a nostalgia da grandeza passada – impedir-nos de reconhecer na pintura, com a verosimilhança histórica que a razão permite, os rostos e o espírito da Lisboa de 1445, esses bem assentes na realidade? Certamente que não!

Hoje, mais do que nunca, tenhamos em mente o conselho dado em 1919 por António Sérgio (A Conquista de Ceuta, parágrafo final): «Cumpre, porém, que saibamos reaver o sublime dom de pôr a clareza do entendimento – como os Infantes – ao serviço do ‘talent de bien faire’ e da ‘virtuosa bemfeitoria’».

Quando o fizermos, varridas as teias da confusão e do encobrimento, veremos finalmente os Painéis de Nuno Gonçalves rebrilharem à luz da razão.

{relacionados}