Vasco Graça Moura. “E traduzindo me escrevi”

No ano em que se assinalam os 400 anos da sua morte, a Quetzal lança uma nova edição dos “Sonetos” do bardo inglês. Assina-a Vasco Graça Moura, que virou do avesso a mítica invisibilidade do tradutor

“Poeta até ao umbigo, os baixos… prosa”. Assim se definiu Vasco Graça Moura, dando corpo à tensão que anima toda a sua escrita, esse somatório não decomponível do “honesto estudo com longa experiência misturado”, do talento, da mestria oficinal, da capacidade inventiva, da sensibilidade.

Na sua disciplinada capacidade de trabalho, na aura de segurança que transportava para todos os domínios da criação literária, integrava o autor aquela minoria contemplada no adágio ‘muito e bem há pouco quem’. A sua tradução integral dos Sonetos de William Shakespeare, publicada pela primeira vez em 2002, faz prova disso mesmo. João Barrento referiu-se então, num texto no “Público”, a uma “reelaboração fluente e soberana” que lhe permitia ouvir Shakespeare à transparência. E acrescentou: “Graça Moura não se limita a traduzi-los: conhece-lhes a história e as vicissitudes editoriais, integra-os nos seus diversos contextos, segue o percurso hermenêutico que os traz até nós.”

São conhecidos os versos em que o poeta de “a sombra das figuras” afirma que a inspiração nunca lhe deu nada: “eu acredito/ mas é na técnica. nunca a inspiração/ me deu fosse o que fosse. nem um grito”. Deixariam certamente entristecida a obscura musa que nos idos já remotos de 1974 lhe soprou os primeiros quatro versos de um soneto de Shakespeare na língua de Camões. Não um qualquer, mas aquele em que o dramaturgo reescreve radicalmente a tradição amorosa petrarquista, o soneto 130. Uma escolha nada arbitrária, portanto, se tivermos em conta o gosto declarado de Vasco Graça Moura pela revisão de formulações canónicas do cânone ocidental – tópicos, figuras, mitos, episódios… – de que serão bons exemplos um “aquiles pé leve, emigrante alentejano” ou uma “ema desflaubertizada”.

Este diálogo com o poeta de Stratford-upon-Avon, iniciado sob o signo da musa – uma figura que haveria de passear-se pelo seu próprio espaço poético em trajes sumários e muita descontração irónica – é retomado em 1977, ano em que publica “50 Sonetos de Shakespeare”. Prossegue 25 anos depois com a tradução de todos os 154 sonetos que o criador de Hamlet nos deixou, e que se julga terem sido escritos ao longo de toda a sua carreira. Movendo-se na órbita do desafio, Vasco Graça Moura, sempre fiel à estrutura do soneto inglês, assumia então os riscos do decassílabo (o correspondente do pentâmetro iâmbico inglês) em vez da mais ampla respiração do alexandrino que marcava o ritmo das primeiras versões. Nesta opção de sabor camoniano, Shakespeare, transferido para o cânone literário português, vê-se envolvido numa espécie de bem sucedido processo de deslocalização.

No seu complexo significativo, orquestrado pelo tradutor com mão inventiva, os “Sonetos” perfazem “uma espécie de diário sentimental” escrito ao longo dos anos ou autobiografia de “carne e de sentidos”, para usar uma expressão de Camões, onde se encenam várias modalidade de triangulação amorosa, entre as quais as de explícito sinal homoerótico, nunca rasurado por Graça Moura com pudibundas perífrases.

Poeta de várias tonalidades e modulações, dono de uma destreza verbal que lhe permitia transitar facilmente entre textos breves e longos, entre formas livres e fixas, registos semânticos, as falas cultas e as falas do quotidiano mais prosaico, Vasco Graça Moura entendia a tradução literária como uma extensão do seu trabalho de escritor. Considerava cada uma delas sua num sentido suficientemente forte para as ter integrado no catálogo das suas obras de criação original, sugerindo assim que a tradução literária pode constituir-se como uma modalidade de expressão poética. Não há tradução saída da pena do autor que não traga o selo da liberdade criadora e o timbre peculiar da sua própria voz poética.

Nos prosaicos tempos que correm, seduzidos pela cultura do efémero, a reedição da integral dos sonetos de Shakespeare (ou de Graça Moura?) é sempre de saudar. Não com aquele respeitoso descaso que nos permite manter em bom pé de cortesia as nossas relações, ou a distância cautelar que guardamos de certas velharias de museu literário, por já nada terem a dizer-nos, mas com a garantia de quem se acha diante de um corpus vivo o suficiente para, à distância de quatro séculos, nos acenar com a marca do Humano – com as suas aspirações, tantas vezes frustradas, os seus impasses, rumos e desnortes, desalentos, angústias e abismos, mas também, e acordada a fera do ciúme que o amor pode produzir, as suas ferocidades passionais à escala de um palco de instabilidades.

Aclamado tradutor de alguns dos maiores clássicos da literatura europeia, Graça Moura soube erguer aquilo a que o próprio chamou “um teatro lírico da crueldade” sobre o qual se projeta a sombra da morte. Foi um trabalho de semanas e ao mesmo tempo de décadas que deixou à vista o génio de Shakespeare, por vezes traído por amor a uma fidelidade maior, e o seu próprio.