DOHA – Está sentado à nossa frente com a aparente tranquilidade que costumava ter. Só não puxa é constantemente do cigarro como dantes. Jesualdo Ferreira está em Doha, capital do Catar, como treinador do Al-Sadd Sports Club, o mais histórico do país. Não parece feliz, mas essa é uma interpretação nossa. Talvez de alguma forma resignado.
Diz: “Algum dia tenho de acabar, de pôr um ponto final na carreira. Já tenho 70 anos, é altura de viver coisas que o futebol, que me deu tanto, não conseguiu dar. Se calhar é agora. Quando acabar o meu atual contrato, quero dizer. Ainda tenho mais ano e meio. Estranhei mas foi mesmo assim: contrataram-me por duas épocas. Pode ser que esta seja a minha última aventura”… 70 anos completados em 24 de Maio. Lembro-me dele no Torrense, nos finais dos anos-80, na I Divisão, no tempo em que José Couceiro ainda era defesa-central. E melhor me lembro ainda no Torneio de Toulon, em 1992, conquistado por Portugal pela primeira vez – só estavam presentes dois jornalistas da imprensa escrita –, vitória na final frente à Jugoslávia. Jesualdo tinha Rui Costa e Jorge Costa, Nelson e Abel Xavier, Capucho, Gil, Morgado, Brassard e mais e mais e mais. 2-1, o resultado. Jesualdo voltou a Toulon e voltou a ser feliz. Como foi feliz no Benfica, com Toni, e no FC Porto, como tri-campeão, o primeiro treinador português a consegui-lo.
Os anos passaram entretanto. Títulos, momentos únicos. Mundos tão diferentes deste, de hoje. Sente a falta da multidão, do futebol frenético de adeptos excitados. “Vivi isso muito intensamente, em Portugal, na Grécia e no Egipto”. O Egipto foi a sua mais recente aventura, antes desta, está bem de ver: campeão e vencedor da taça pelo Zamalek. “Uma paixão incrível por futebol. Ainda hoje me adoram lá. Recebo mails, mensagens pelo facebook, pelo twitter”. Agora a realidade é outra.
O Al-Sadd Primeiro clube árabe a vencer a Taça dos Campeões da Ásia, em 1989, frente aos iraquianos do Al Rasheed – repetiria a proeza em 2011 –, 13 vezes campeão do Catar, 15 vezes vencedor da Taça do Emir, 5 vezes vencedor da Taça do Príncipe, 13 vezes vencedor da Supertaça. Ufa! Não há neste pequenino país do Golfo quem se aproxime destes números. E, no entanto, Jesualdo veio com a missão de recuperar um título que foge desde 2013. “O futebol aqui é muito diferente. Tem particularidades que, às vezes, não permitem um trabalho com continuidade. Repare-se: estamos na 6.ª jornada de um campeonato interrompido há mais de um mês. E agora, no espaço de outro mês, teremos de disputar seis jornadas. Não é fácil para um treinador. Neste momento em que a seleção vai jogar as eliminatórias do Campeonato do Mundo de 2018, estou a trabalhar só com oito jogadores. Dez estão convocados – sete para a principal, três para os sub-21. É bom que lhes reconheçam qualidade e, em consequência, a qualidade do trabalho que tenho feito com eles. Mas que é complicado, é”.
Também não será desta que o Catar estará na fase final de um Mundial – acaba de empatar na China por 0-0, num duelo entre Jorge Fossati, que foi treinador do Al-Sabb com sucesso, e o campeão do mundo, Marcello Lippi, recentemente empossado como selecionador chinês. Certo é que estará no próximo, organizado aqui mesmo, no Catar. “É um esforço imenso, o que está a ser feito. Um país tão pequeno vai ter dez estádios novos. E já tem, hoje, pelo menos oito. Vai mexer muito com tudo. Veremos quais serão, em seguida, as consequências. A verdade é que o governo local apoia muito o desporto. No futebol, por exemplo, paga uma percentagem dos ordenados dos jogadores profissionais. Por isso, entre clubes do Catar, não há transferências. Mas há, obviamente, alguns que querem sair para campeonatos mais competitivos, onde possam evoluir. Tenho vários jogadores jovens de muita qualidade técnica, mas precisam de acreditar mais neles próprios, de serem mais competitivos”.
Xavi Um dos jogadores de Jesualdo Ferreira é Xavi, antigo capitão do Barcelona. “Extraordinário! Um profissional incrível! Corre mais do que os outros, esforça-se mais do que os outros, tem uma simplicidade impressionante. A sua qualidade já todos conhecemos. Eu fiquei a conhecer o indivíduo que está no Catar para muito mais do que ser apenas um jogador de futebol – ele participa em imensos eventos de divulgação do desporto no país. Posso dizer que foi dos melhores jogadores que treinei na minha carreira, que é um fenómeno que só acontece de quando em vez, como são os jogadores daquela categoria. Treinar o Xavi é um privilégio!”.
A distância de casa é grande. Jesualdo Ferreira parece já ter esgotado a sua ânsia de emigrante. “Gostei de voltar a Portugal e de trabalhar no Sporting, que é um clube especial, muito diferente de Benfica e FC Porto. Acho que deixei trabalho, promovi vários jogadores que agora estão aí, cumprindo as suas carreiras, como o Cédric, o Bruma ou o Eric Dier. Mas não foi uma época feliz para o clube. Deixei de ter condições para continuar, apesar do convite que me foi feito pelo presidente”.
A mulher, Zulmira, aparece para visitas de tempos a tempos. Vai mitigando a saudade. “Há muitos portugueses no Catar”. E não é de Caixinha, treinador do Al-Gharafa, que fala. Nem de Ro-Ro, nascido em Cabo Verde mas já internacional pelo Catar, que também é seu jogador. “Encontro-os nos treinos, nos jogos, nos estádios. Acho que na Al-Kass – Al Dawri wal Kass, um canal desportivo dedicado ao futebol que funciona desde 2013 – trabalham uns trinta. São técnicos, câmaras, engenheiros. Têm aberto espaço para que outros venham para cá trabalhar, o que é muito bom. Agora ver o futebol português é que não consigo. Não passam nas televisões de cá, tenho de recorrer à internet, mas muitas vezes disputam-se às horas dos treinos ou dos jogos. Outro dia vi o FC Porto contra o Benfica e acho que o Porto deu um amasso. Valeu ao Benfica que o Rui Vitória é um homem tranquilo e parece segurar os jogadores”.
Jesualdo Ferreira prefere viver num hotel. Um edifício enorme virado para a baía. Já passa bem da meia-noite e a conversa prolonga-se numa esplanada agradável com música tranquila. Talvez este seja o último porto de um homem que correu mundo. Depois regressará a casa como todos os vencedores. “Está-se bem aqui. Temperatura boa. Mas no Verão nem pensar: fecham tudo e recolhem-se ao ar condicionado. O bafo é insuportável”. Última aventura? Talvez… Talvez…
“Xavi é extraordinário! Um profissional incrível! Corre mais do que os outros, esforça-se mais do que os outros, tem uma simplicidade impressionante”